quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Participantes do "Grupo de Trabalho acerca do Século XX em Mato Grosso", cujos trabalhos foram apresentados no Seminário de Prática de Pesquisa


Apresentação de trabalho no Seminário de Prática de Pesquisa

Considerações acerca do artigo de Rusen

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: ed. UNB, 2001. P. 149-171.

O cap. IV do livro de Rüsen intitulado “A Constituição Narrativa do Sentido Histórico”, proporciona uma reflexão acerca da importância do que o autor chama de “paradigma narrativista” para o pensamento histórico, considerando que o “pensamento histórico (...) procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e a seu mundo(...)” e que “narrar é uma prática cultural de interpretação do tempo, antropologicamente universal”(2001:149), o texto é construído na perspectiva de apontar para a complexidade do paradigma supra mencionado, destacando que “a narrativa foi concebida como um modo de explicação próprio à explicação histórica.
Em linhas gerais, o texto busca operar uma reconstrução das teorias da história, com vistas, ao que me parece, a delimitar suas características e o seu papel no ofício dos historiadores, quando recortam seus objetos de pesquisa, definem suas fontes e suas abordagens, assimilam um estilo à sua escrita da história e buscam inquirir e interpretar as sociedades passadas. Assim os questionamentos: como definir a questão do sentido na história? Como pensar a questão do progresso no processo histórico? Foram os problemas levantados pelo autor, e com os quais intentou apontar para caminhos possíveis de discussão do assunto.
Segundo Rüsen, o historiador articula suas reflexões dentro do que definiu como “Matriz Disciplinar” onde estariam agrupados cinco elementos: idéias, métodos, formas, funções e interesses. Para o autor uma “matriz disciplinar” é uma explicação teórica do tipo de “racionalidade da constituição histórica de sentido” (2001:161).
Ressalto a profundidade com que o autor discute questões referentes à racionalidade e ao uso do paradigma narrativista, e destaco a discussão que faz em torno da questão do Holocausto, bastante discutido por Hayden White (2006: 191-210) no texto “Enredo e Verdade na Escrita da História”, momento em que faz alguns questionamentos acerca do holocausto tais como: o nazismo e a solução final pertencem a uma classe especial de eventos? Possui enredos elaboráveis de uma só forma e significa apenas um tipo de sentido? As naturezas do nazismo e da solução final colocam limites absolutos no que pode ser verdadeiramente dito sobre eles? Colocam limites nos usos que podem ser feitos delas pelos escritores de ficção ou poesia? Para Rúsen “seria possível para o pensamento histórico em geral, mas igualmente para a elaboração interpretativa do holocausto, se a deficiência fundamental de sentido que se revela nele, sua absoluta falta de sentido como experiência histórica, se esgotasse nele” e conclui acerca da questão “o Holocausto representa, pois, uma qualidade de experiência na relação temporal tensa entre passado e presente, a ser devidamente levada em conta por um tipo apropriado de constituição narrativa de sentido.” O que, a meu ver aproxima o posicionamento dos dois autores em relação ao tema referente à narrativa histórica que, para Rüsen “poder levar em conta essa dialética negativa da constituição do sentido mediante um modo do narrar – pela recusa e pela inversão das estratégias tradicionais da narrativa que constroem a história a partir da experiência histórica, e mediante uma reflexividade intensificada do modo narrativo, com a qual se demonstra o alcance limitado dos critérios de sentido utilizados” (2001:173).

Relatos Orais: do "indizível" ao "dizível"

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: do “indizível” ao “ dizível” . in: SIMSON, Olga Moraes Von. Experimentos com Histórias de Vida (Itália-Brasil). São Paulo: vértice, 1988. P. 14-43.
“(...) Quanto a Jonh Dollard, sua preocupação era as implicações psicológicas das histórias de vida. (...)subjetivismo do informante, o que deturparia sua narrativa. (...) o relato oral (...) técnica útil para registrar o que ainda não se cristalizara em documentação escrita, o não conservado, o que desapareceria se não fosse anotado; servia, pois, para captar o não explícito, quem sabe memso o indizível.” P. 15
“O relato oral está, pois, na base da obtenção de toda a sorte de informações e antecede a outras técnicas de obtenção e conservação do saber(...) a escrita, quando inventada, não foi mais do que uma nova cristalização do relato oral.” P. 16
“Desde que o processo de transmissão do saber se instala, implica imediatamente na existência de um narrador e de um ouvinte ou de um público.(...) A única forma de se conservar o relato por longo tempo está ainda em sua transcrição. Volta-se ao que se acreditava evitar com o gravador, isto é, à intermediação escrita entre o narrador e o público para a utilização do relato, e às possíveis deturpações dela decorrentes. P. 17
“(...)ao utilizar o relato, o pesquisador o fará de acordo com suas preocupações e não com as intenções do narrador, isto é, as intenções do narrador serão forçosamente sacrificadas. (...) desde o início da coleta do material, quem comanda toda a atividade é o pesquisador, pois foi devido a seus interesses específicos que se determinou a obtenção do relato. (...)” P. 18
“História oral é termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer completar.(...) busca-se uma convergência de relatos sobre um mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo. (...)Na verdade tudo quanto se narra oralmente é história, seja a história de alguém, seja a história de um grupo, seja história real, seja ela mítica.” P. 19
“(...) ora fornecem dados originais, ora complementam dados já obtidos de outras fontes. (...) Avanços e recuos marcam as histórias de vida; e o bom pesquisador não interfere para restabelecer cronologias, pois sabe que também estas variações no tempo podem constituir indícios de algo que algo permitirá a formulação de inferências; na coleta de histórias de vida, a interferência do pesquisador seria preferencialmente mínima.
Outro aspecto (...) é ser ela uma técnica cuja aplicação demanda longo tempo.(...)” P. 20
“Toda história de vida encerra um conjunto de depoimentos. (...) embora o pesquisador subrepticiamente dirija o colóquio, quem decido o que vai relatar é o narrador, diante do qual o pesquisador deve se conservar tanto quanto possível, silencioso. (...) P. 21
“(...) No caso da pesquisa para esclarecer o cotidiano paulistano de pessoas de baixa renda entre 1920 e 1937, uma das questões que o pesquisador tinha em mente era saber como os informantes haviam vivenciado ocorrências como as revoluções de 1924, 1930,1932. Todavia se o informante nada dizia a respeito, também nada perguntava o pesquisador, não tentando “avivar a memória” de seu interlocutor. Ao contrário, a “falha de memória”, encontrada em vários casos, podia ser reveladora da forma de participação desta parcela de população em tais acontecimentos. (...)
“(...) autobiografia não existe, ou se reduz ao mínimo, a intermediação de um pesquisador; o narrador se dirige diretamente ao público, e a única intermediação está no registro escrito, quer se destine ou não ao texto à publicação.” P. 23
(...) a finalidade de um biógrafo, ao escrever-lhes a história, é oposta à de um pesquisador ao utilizar a técnica de histórias de vida. O primeiro fará ressaltar em seu trabalho os aspectos marcantes e inconfundíveis do indivíduo cuja existência decidiu revelar ao público. O segundo busca, com as histórias de vida, atingir a coletividade de que seu informante faz parte, e o encara, pois, como mero representante da mesma através do qual se revelam os traços desta. (..) em seu anonimato, contém o indivíduo num microcosmo as configurações que sua coletividade abarca, ao ordenar umas em relação às outras unidades, de que se compõem o grupo.” P. 24
“Embora colhidas com finalidades muito diferentes, autobiografias e biografias são perfeitamente utilizáveis pelos cientistas sociais como material de análise.(...)
Quando John Dollard examinou os critérios que tornariam aceitáveis as histórias de vida como fornecedoras de dados para o sociólogo, tropeçou justamente com o problema de estar lidando com o desenvolvimento de um indivíduo dentro de determinada sociedade e portanto, de estar abarcando o comportamento deste, e não diretamente os dados sobre a coletividade em foco. E quando, no período em que publicou seu livro, outros cientistas sociais cogitaram do aproveitamento deste tipo de material, assim como dos depoimentos orais, pareceu a muitos deles que a interferência da subjetividade do narrador falseava de maneira perniciosa as entrevistas. Franz Boas,(...) colhendo os relatos de anciãos das tribos norte-americanas, não se deixou deter por este aspecto. (..)Descobria assim a condição sine qua non para que a história de vida e os relatos orais sobre o passado pudessem ser utilizados: comportamentos e valores são encontrados na memória dos mais velhos, mesmo quando estes não vivem mais na organização de que haviam participado no passado, e assim se pode conhecer parte do que existira anteriormente e se esmaecera no embates do tempo. (...) P. 25
“ (...) todo registro de uma história de vida, mesmo quando hoje é feito por intermédio do gravador, desliga-a do contexto em que se deu a entrevista; e esta falha é mais grave se a entrevista teve lugar fora dos lugares em que o informante habita ou trabalha. (...)” P. 26
“(...) mesmo aqueles que se manifestaram de modo muito estusiástico a respeito das histórias de vida reconheceram que a utilização somente delas resultava em trabalhos limitados. (...) o belo trabalho de Germaine Tillion sobre os campos de concentração nazista em que esteve detida durante a 2ª Grande Guerra, e que teve como uma das fontes de dados, além da vivência da autora, uma larga coleta de depoimentos orais. (...) Organizou então uma coleta de dados muito mais ampla, a fim de que da complementação e do cotejo entre eles, se reformulasse uma imagem do campo de concentração cuja confiabilidade fosse muito maior do que a que resultava dos depoimentos. “ P.27
“ É certo que toda pesquisa sociológica quer utilize técnicas como a história de vida, quer outras técnicas diversas (...) ganha novas dimensões, maior profundidade, maior envergadura, desde que acompanhadas e complementadas por outras maneiras de coleta. (...) Histórias de vida de indivíduos de camadas sociais diversas a respeito de um mesmo momento ou acontecimento são, por exemplo, preciosas como fontes de dados e controle.” P. 28
“ A história de vida, como qualquer outro procedimento empregado na coleta de dados, é pois, um instrumento, não é nem coleta, nem produto final da pesquisa; ela recolhe um material bruto que necessita ser analisado. (...) França (...) até a década de 20(...) continuavam muito importantes os liames do parentesco, as alianças matrimoniais tradicionais; valorizava-se a experiência dos mais velhos, sempre respeitados ; na infra-estrutura material do cotidiano inexistiam água corrente, luz elétrica, estradas asfaltadas; e apesar da leitura e da escrita se terem difundido desde a segunda metade do séc. XIX, a transmissão de conhecimentos por via oral e pela experiência direta continuava de grande relevância, sob a orientação dos mais velhos que detinham o saber prático referente às atividades agrícolas e aos ofícios.” P. 30
“(...) Os anciãos seriam as últimas testemunhas ainda existentes de um estilo de vida que se desfazia, e esta constatação levou cientistas sociais franceses a se interessarem pela história oral em todas as suas formas. (...) Oscar Lewis se preocupou em conhecer as relações familiares de indivíduos de baixa renda no México (...) Para esclarecer a questão escolhida pelo pesquisador não é necessário recorrer a pessoas idosa; torna-se primordial destacar informantes cujos relatos cubram o campo investigado. (...) Conhecer o relacionamento no interior da constelação familiar se tornava possível através das narrativas de pais , de filhos, de parentes que com eles convivessem.” P. 31
“(...) O trabalho pioneiro se desenvolveu em S. Paulo, cidade cujo crescimento acelerado e transformações radicais constituem grandes provocações para se inquirir o que sucede com os processos de conservação das lembranças. P. 33
“ (...) Vive-se hoje um momento privilegiado para se captar, por meio de história oral, e mais particularmente por intermédio de histórias de vida ou de depoimentos pessoais, a maneira pala qual diferentes camadas sociais, diferentes grupos, homens e mulheres, várias faixas de idade estão experimentando as mudanças que ocorrem, seguno que valores as estão encarando, quais as normas que aceitam para seus comportamentos e quais as que rejeitam.
Uma técnica qualitativa como a das histórias de vida pode coexistir tranquilamente com técnicas quantitativas como a da amostragem, desde que cada uma delas seja aplicada a um momento específico da pesquisa.(...) A querela é vã; o importante é saber escolher a técnica adequada ao tipo de problema, à especificidade do dado e ao momento preciso da investigação.” P. 35
“ Se o indivíduo obedecesse a determinações exclusivamente suas e inconfundíveis, então realmente as histórias de vida seriam impróprias para uma análise sociológica. No entanto, o que existe de individual e único numa pessoa é excedido, em todos os seus aspectos por uma infinidade de influências que nela se cruzam e às quais não pode por nenhum meio escapar, de ações que sobre ela se exercem que lhe são inteiramente exteriores. Tudo isto constitui o meio em que vive e pelo qual é moldada; (...)” P. 36
“(...) a sociologia atualmente se orientou também para o subjetivismo, considerando que ele não decorre exclusivamente de bases biológicas e psicológicas, porém que se desenvolve numa coletividade, sendo portanto revelador desta. (...) P. 37
“(...) as manifestações do subjetivismo respondem sempre a algo que é exterior aos indivíduos.” P.37-38.
“Ainda que o subjetivo seja entendido como as sensações intraduzíveis, ainda assim é próprio dos indivíduos tentar compreendê-las primeiramente, e transmitir aos outros o que compreendeu; porém ao fazê-lo forçosamente utiliza os mecanismos que tem à sua disposição e que lhe foram dados pela família, pelo grupo, pela sociedade. (...)”P. 39
“As histórias de vida aparecem então como instrumentos de grande utilidade para atingir, sob a gama dos modelos de pensamento e de ação mais recentes, adquiridos no contado com a realidade sócio-cultural cotidiana, as estruturas mentais mais antigas.” P. 40

Implicações Econômica, Sociais e Existenciais da Ocupação de Sonora-MS

IV Encontro sobre Economia Mato-grossense

Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa (Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em História da Universidade Federal de Mato Grosso)

Prof. Dr. Fernando Tadeu de Miranda Borges (Professor nos Mestrados em História e Economia da Universidade Federal de Mato Grosso , Diretor da Faculdade de Economia da UFMT e Orientador do presente estudo)


Implicações Econômicas, Sociais e Existenciais da Ocupação de Sonora-MS.

Vislumbro a possibilidade de abordar no presente texto, concepções metodológicas presentes na obra de BAUMAN(2005), para quem “a metodologia utilizada para abordar um assunto busca acima de tudo “revelar” a miríade de conexões entre o objeto da investigação e outras manifestações da vida na sociedade humana”. São essas conexões que tenho buscado fazer em relação ao estudo da região do Vale do Correntes, onde está localizado o município de Sonora no extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul. No intuito de compreender os “(Des) Caminhos que Conduzem a Sonora” bem como as políticas de incentivo ao processo de ocupação do extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul a partir de 1970”, busco entender as questões concernentes ao incentivo governamental na forma de créditos subsidiados que possibilitaram a colonização privada na região do Vale do Correntes, onde atualmente está localizado o município de Sonora ao norte do estado de Mato Grosso do Sul, procuro entender ainda a dinâmica da fronteira que levou à formação daquele espaço, bem como a questão de territorialização, desterritorialização e concepções de identidade com base em autores que trabalham com questões concernentes aos Territórios e Fronteiras.
Até a divisão do estado, a região em foco fazia parte do Estado de Mato Grosso. Em 1977, com a divisão, estudos sobre a agroindústria canavieira se voltaram para a região do Vale do Correntes, onde encontra-se situado o município de Sonora. A mencionada região, ao contar com os créditos estatais referenciados conseguiu a instalação da Usina Aquárius, hoje "Companhia Agrícola Sonora Estância", tendo sido beneficiada com o processo de modernização promovido pelo estado, e se convertido em marco dessa "modernização conservadora", cuja conseqüência imediata acabou ocasionando um redirecionamento de fronteiras que possibilitou a concentração de terras, a intensa pecuarização e a desterritorialização do trabalhador rural.
A formação daquele território e das identidades ou do embate entre essas identidades que se encontram ali presentes parecem fazer parte de um quadro geral da sociedade brasileira dos anos de 1970 é o que aponta o jornal “Defesa” no ano de 1975.
“O norte do Mato Grosso começa a repetir a tristemente conhecida história da colonização do norte do Paraná , onde a luta pela terra, com o sacrifício físico e sanguinolento dos contendores era lugar comum.
Aqui também, já é comum a luta fratricida por plano de terra. Veja-se a estatística criminal e constate-se que 60% dos crimes ocorridos no norte do estado são oriundo de questões de terras.

O artigo do jornal Defesa, de 1975 aponta para a questão da formação do território brasileiro e a violência que a constituição desse território teria gerado, isso pode indicar que os embates teriam levado ao fato de que uma parte da população teria tido acesso a esse território enquanto outra parcela desta população teria sido desterritorializada, não nos cabe nos limites do presente texto discutir as questões de formação de propriedades, em que bases e mediante quais métodos, o que interessa nos limites desta produção diz respeito a uma questão de operacionalização de conceitos e ao tratar da questão da desterritorialização, não poderia deixar de citar HAESBAERT (2006), para quem “o mito da desterritorialização é o mito dos que imaginam que o homem pode viver sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se o movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua reconstrução em novas bases (HAESBAERT:2005)”.
O termo desterritorialização é novo, entretanto os argumentos utilizados em torno dessa questão não são inéditos como aponta HAESBAERT (2005), ao afirmar que “muitas posições de Marx em “O Capital” e no “Manifesto Comunista”revelavam claramente uma preocupação com a “desterritorialização”capitalista, seja a do camponês expropriado, transformado em “trabalhador livre”, e seu êxodo para as cidades, seja a do burguês mergulhado numa vida em constante movimento e transformação, onde “tudo que é sólido desmancha no ar”na famosa expressão popularizada por BERMAN (1986)”.
Neste debate em torna da questão da desterritorialização, Haesbaert alerta para o fato de que para entender a desterritorialização é necessário entender primeiramente o que se concebe como território o autor alerta para o fato de que se “a desterritorialização existe, ela está referida sempre a uma problemática territorial e, consequentemente, a uma determinada concepção de território. Para uns, por exemplo, desterritorialização está ligada à fragilidade crescente das fronteiras, especialmente das fronteiras estatais- o território, aí, é sobretudo um território político. Para outros, desterritorialização está ligada à hibridização cultural que impede o reconhecimento de identidades claramente definidas, um território simbólico, ou um espaço de referência para a construção de identidades”.
Parece-me que a obra de BAUMAN (2005) caminha de um pólo à outro das concepções apontadas por Haesbaert, visto que para ele ao mesmo tempo que considera “a questão da identidade como estando ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao posterior crescimento da sensação de insegurança, com a “corrosão do caráter” que a insegurança e a flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade”. Considera também a identidade “como algo revelado a ser inventado, e não descoberto”. Em suma, o discurso que procura estabelecer uma identidade é claramente ideológico, defende interesses que não são necessariamente legítimos.
Enquanto para Haesbaert a desterritorialização é um mito e o que existe na verdade são territórios múltiplos, Bauman fala da existência de desterritorializados “num mundo de soberania territorialmente assentada. Ao mesmo tempo que compartilham a situação de subclasse, eles, acima de todas as privações, têm negado o direito à presença física dentro de um território sob lei soberana, exceto em “não-lugares” especialmente planejados, denominados campos para refugiados ou pessoas em busca de asilo a fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas “normais”, “perfeitas”, vivem e se movimenta”.
Ao finalizar este texto compartilho com o leitor, algumas reflexões e analogias que considero possíveis em relação à questão do “não-lugar”, penso que os barracões e alojamentos criados especificamente para os trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, em regiões como a do Vale do Correntes, por exemplo, podem ser entendidos como “não-lugares”, pois é o espaço, onde o trabalhador, desterritorializado de seu lugar de origem e sofrendo os efeitos de uma fragmentação da sua identidade e, em alguns casos até mesmo a perda desta, momentos em que chegam à condição de verdadeiros lixos humanos, habitando a tênue fronteira que os separa da condição de seres humanos, os barracões são espaços de uma vida em suspense, à espera sempre do momento de retorno para os locais de origem onde, em geral o que aguarda a maioria desses trabalhadores é uma situação de marginalização social e pobreza. Destaca-se o fato de que a geração que nasceu nos anos de 1970, está sofrendo os efeitos da formação do mundo contemporâneo, especialmente dos anos de 1990, momento em que as pessoas deixam de ser desempregadas e se tornam “redundantes”, ou seja, passam a não ter mais espaço e conforme as palavras de BAUMAN (2005), passam a ser refugo, lixo. A trajetória dos referidos trabalhadores é marcante, visto que o limite entre exclusão e inclusão é muito tênue.

















REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA




BAUMAN, Zygmunt. “Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi”. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005

BAUMAN, Zygmunt. “Vidas desperdiçadas”. Tradução de Carlos Aberto Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

BERMAN, Marshall. “Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade”. Trad. de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

BRAY, Silvio Carlos; FERREIRA, Enéas Rente; RUAS, Davi Guilherme Gaspar. “As Políticas da Agroindústria Canavieira e o Proálcool no Brasil”. Marília: Unesp-Marília-Publicações, 2000.


FIGUEIRA, Ricardo Rezende. “Pisando Fora da Própria Sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo.” Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2004.

HAERBAERT, Rogério. “O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

HALBWACHS, Maurice. “ Memória Coletiva” .São Paulo: Vértice, 1990.
LE GOFF. Jacques. “ História e Memória”. São Paulo: editora da UNICAMP, 1994.

MARTINS, José de Souza. “Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano”.São Paulo: Hucitec, 1997.

Fichamento do livro "A Memória Coletiva" de Halbwachs.

HALBWACHS, Maurice (1877-1945). A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
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p. 25
"Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar, o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos pareçam obscuras. Ora, a primeira testemunha, à qual podemos sempre apelar, é a nós próprios."
/
"Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos."
p. 26
"Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distinguam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem."
p. 34
"Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum."
p. 47
"Quantas vezes exprimimos então, com uma convicção que parece toda pessoal, reflexões tomadas de um jornal, de um livro, ou de uma conversa. Elas correspondem tão bem à nossa maneira de ver que nos espantaríamos descobrindo qual é o autor, e que não somos nós."
/
"Toda a arte do orador consiste talvez em dar àqueles que o ouvem a ilusão de que as convicções e os sentimentos que ele desperta neles não lhes foram sugeridos de fora, que eles nasceram deles mesmo, que ele somente adivinhou o que se elaborava no segredo de suas consciências e não lhes emprestou mais que sua voz."
/
"Quantos homens têm bastante espírito crítico para discernir, naquilo que pensam, a parte dos outros, e confessar a si mesmos que, no mais das vezes, nada acrescentam de seu?"
/
"na medida em que cedemos sem resistência a uma sugestão de fora, acreditamos pensar e sentir livremente. É assim que a maioria das influências sociais que obedecemos com mais freqüência nos passam despercebidas."
p. 49
"as lembranças que nos são mais difíceis de evocar são aquelas que não concernem a não ser a nós, que constituem nosso bem mais exclusivo, como se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de escapar também a nós próprios."
p. 50
"Os atrativos desses atalhos pertencem aos dois caminhos e os conhecemos: mas é preciso alguma atenção, e talvez algum acaso, para que tornemos a encontrá-los; e podemos percorrer um grande número de vezes um e outro sem ter a idéia de procurá-los, sobretudo quando não podemos contar, para nos sinalizar, com os passantes que seguem algum desses caminhos, porque eles não se preocupam em ir a onde conduziriam os outros."
p. 51
"cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios."
/
"Dessas combinações, algumas são extremamente complexas. É por isso que não depende de nós fazê-las reaparecer. É preciso confiar no acaso, aguardar que muitos sistemas de ondas, nos meios sociais onde nos deslocamos materialmente ou em pensamento, se cruzem de novo e façam vibrar da mesma maneira que outrora o aparelho registador que é nossa consciência individual."
p. 52
"a lembrança aparece pelo efeito de várias séries de pensamentos coletivos em emaranhadas, e [...] não podemos atribuí-la exclusivamente a nenhuma dentre elas."
p. 55
"memória autobiográfica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e denso."
/
"a história, com efeito, assemelha-se a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada instante, achar lugar para novas sepulturas."
p. 60
"Não é na história aprendia, é na história vivida que se apóia nossa memória."
p. 65
"Os avós se aproximam das crianças, talvez porque, por diversas razões, uns e outros se desinteressam dos acontecimentos contemporâneos sobre os quais se fixa a atenção dos pais."
p. 67
"A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparência."
p. 68
"costumes modernos repousam sobre antigas camadas que afloram em mais de um lugar."
p. 71
"a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada."
p. 72
"Não tenho nenhuma memória das épocas ou dos momentos que senti vivamente." (Stendhal, Vie de Henri Brulard)
/
"Á medida em que os acontecimentos se distanciam, temos o hábito de lembrá-los sob a forma de conjuntos, sobre os quais se destacam às vezes alguns entre eles, mas que abrangem muitos outros elementos, sem que possamos distinguir um do outro, nem jamais fazer deles uma enumeração completa."
p. 75
"Há muitos graus nesta ignorância ou nesta incompreensão, e num e noutro sentido, não atingimos jamais o limite da clareza total ou da sombra inteiramente impenetrável."
p. 77
"A imaginação [...] ocupou as lacunas de sua memória: em sua narrativa tudo parece merecer fé, uma mesma luz parece iluminar todas as paredes; mas as fissuras se revelam quando as consideramos sob um outro ângulo."
p. 80
"porque geralmente a história começa somente no ponto onde acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social. Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixá-la por escrito, nem mesmo fixá-la, pura e simplesmente. Assim, a necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade, e mesmo de uma pessoa desperta somente quando eles já estão muito distantes no passado, para que se tivesse a oportunidade de encontrar por muito tempo ainda em torno de si muitas testemunhas que dela conservem alguma lembrança."
p. 85
"A história é uma e podemos dizer que não há senão uma história."
/
"O mundo histórico é como um oceano onde afluem todas as histórias parciais. Não é de estranhar de que na origem da história, e mesmo em todas as épocas, se tenha sonhado escrever tantas histórias universais."
p. 90
"as divisões do tempo, a duração das partes assim fixadas, resultam de convenções e costumes, e [...] exprimem também a ordem, inelutável, segundo a qual se sucedem as diversas etapas da vida social."
p. 92
"outros tantos oásis, onde, precisamente, esquece-se o tempo, mas onde, em contapartida, nos encontramos."
/
"a sociedade, obrigando-nos a medir sem parar a vida à sua maneira, nos torna cada vez mais inaptos para fazê-lo da nossa."
p. 96
"não existe[m], na realidade, estados, porém movimentos, ou um pensamento incessantemente em devir."
p. 99
"O trágico da dor, que faz com que, levada até um certo ponto, crie em nós um sentimento desesperado de angústia e impotência, é que sobre um mal cuja causa está naquelas regiões de nós mesmos onde os outros não podem chegar, ninguém pode fazer nada já que nos confundimos com a dor e que a dor não pode destruir a si mesma."
p. 99 a 100
"Em nosso pensamento, na realidade, cruzam-se a cada momento ou em cada período de seu desenvolvimento, muitas correntes que vão de uma consciência a outra, e das quais ele é o lugar de encontro. Sem dúvida, a continuidade aparente daquilo que chamamos nossa vida interior resulta em parte de que ela segue, por algum tempo, o curso de uma dessas correntes."
p. 113
"há tantos grupos quantas são as origens dos diferentes tempos. Não há nenhum deles que se imponha a todos os grupos."
p. 118
"os acontecimentos dividem o tempo mas não o preenchem."
p. 123
"o que é impessoal é também o mais estável."
p. 125
"Na atividade mesma daqueles que executam uma construção, há sempre mais inquietude do que alegria."
p. 126
"o grupo familiar mais amplo[,] tem mais dificuldade em se isolar materialmente: oferece uma superfície maior aos olhares dos outros, uma abertura maior à opinião."
p. 126 a 127
"Para encontrar uma cidade antiga no labirinto das novas ruas que pouco a pouco circundaram e transformaram casas e monumentos, [...] não se recua do presente ao passado seguindo em sentido inverso e de modo contínuo a série dos trabalhos, demolições, traçados das ruas, etc., que modificaram progressivamente o aspecto dessa cidade. Mas para reencontrar caminhos e monumentos antigos, conservados, aliás, ou desaparecidos, guiamo-nos pela planta geral da cidade antiga, transportamo-nos em pensamento até lá, o que é sempre possível àqueles que ali viveram, antes que se tivesse ampliado e reconstruído os velhos quarteirões, e para quem esses muros ainda de pé, essas fachadas de outro século, esses trechos de ruas guardam sua significação de outrora."
p. 129
"o que caracteriza a memória é, pelo contrário, o fato de que ela nos obriga a nos determos, a nos afastarmos momentaneamente desses fluxos e, senão a percorrer a corrente, pelo menos a nos engajarmos numa direção oblíqua, como se ao longo dessa série contínua houvesse uma quantidade de pontos que originam bifurcações."
p. 130
"Sociedades religiosas, políticas, econômicas, familiares, grupos de amigos, relações, e mesmo reuniões efêmeras de salão, numa sala de espetáculos, na rua, todas imobilizam o tempo à sua maneira, ou impõem a seus membros a ilusão de que por uma certa duração, ao menos, num mundo que se transforma incessantemente, algumas zonas adquiriram uma estabilidade e um equilíbrio relativos, e que nada de essencial ali se transformou por um período mais ou menos longo."
p. 131
"Auguste Comte observou que o equilíbrio mental decorre em boa parte e, primeiro, pelo fato que os objetos materiais com os quais estamos em contato diário mudam pouco, e nos oferecem uma imagem de permanência e estabilidade."
/
"quando algum acontecimento nos obriga também a nos transportamos para um novo entorno material, antes de a ele nos adaptarmos, atravessamos um período de incerteza, como se houvéssemos deixado para trás toda a nossa personalidade, tanto é verdade que as imagens habituais do mundo exterior são inseparáveis do nosso eu."
p. 132
"cada objeto encontrado, e o lugar que ocupa no conjunto, lembram-nos uma maneira de ser comum a muitos homens."
p. 133
"o lugar recebeu a marca do grupo, e vice-versa. Então, todas as ações do grupo podem se traduzir em termos espaciais.
p. 134
"Será o contraste entre a impassividade das pedras e o tumulto no qual se encontram que os persuade que apesar de tudo nada está perdido, já que as paredes e as casas permanecem em pé?"
p. 135
"os homens, presos às correntes que seguem as ruas, quer se apresentem como multidão, quer se dispersem e pareçam querer mutuamente fugir umas das outras e se evitar, assemelham-se a partes de matéria comprimidas umas contra as outras, ou em movimento, e que obedecem, em parte, às leis da natureza inerte. Assim se explica sua insensibilidade aparente, de que as acusamos injustamente, como à natureza sua indiferença, não obstante, para nos acalmar, põe-nos em equilíbrio, colocando-nos, por um instante, sob a influência do mundo e das forças físicas."
p. 136
"Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores."
p. 155
"para os santos, tudo é santo" [provérbio?]
p. 159
"há tantas maneiras de representar o espaço quantos sejam os grupos."
p. 160
"cada sociedade recorta o espaço a seu modo [...] de modo a constituir um quadro fixo onde encerra e localiza suas lembranças."
/
"Não é certo então, que para lembrar-se, seja necessário se transportar em pensamento para fora do espaço, pois pelo contrário é somente a imagem do espaço que, em razão de sua estabilidade, dá-nos a ilusão de não mudar através do tempo e de encontrar o passado no presente; mas é assim que podemos definir a memória; e o espaço só é suficientemente estável para poder durar sem envelhecer, nem perder nenhuma de suas partes."
p. 161
"A lembrança de uma palavra se distingue da lembrança de um som qualquer, natural ou musical, nisto que ao primeiro corresponde sempre um modelo ou um esquema exterior, determinado seja pelos hábitos fonéticos do grupo [...] seja sob a forma impressa [...], enquanto a maioria dos homens, quando ouvem sons que não são palavras, podem dificilmente compará-los a modelos puramente auditivos, porque estes lhes faltam."
p. 162
"Berlioz contou em suas memórias que uma noite compôs mentalmente uma sinfonia que lhe parecia admirável. Ia anotá-la, quando pensou que para executá-la[,] seria necessário perder tempo demais e dinheiro em diligências, quando decidiu renunciar a isto e nada anotou."
p. 163
"Os sons musicais não se fixaram na memória sob a forma de lembranças auditivas, mas aprendemos a reproduzir um seqüência de movimentos vocais."
p. 165
"É porque os sinais e combinações musicais simples subsistem no cérebro, que é inútil que ali se conservem tantas combinações complexas, e basta que as últimas estejam assinaladas em folhas de papel. A partitura desempenha então aqui, o papel de substituto material do cérebro."
p. 169
"quando um homem esteve no seio de um grupo, ali aprendeu a pronunciar certas palavras, numa certa ordem, pode sair do grupo e dele se distanciar. Enquanto ainda usar essa linguagem, podemos dizer que a ação do grupo se exerce sobre ele."
p. 170
"As palavras também são mais numerosas do que as letras, e as combinações de palavras são mais numerosas do que as próprias palavras. O que há de novo em cada página, não são as palavras, nem mesmo os membros da frase: tudo isto reteríamos bem depressa. O que é preciso reter agora ou compreender, aquilo sobre o que a atenção deve se concentrar, é a combinação dos temas elementares, das combinações de notas ou de palavras já conhecidas. Assim se encontra reduzida e simplificada a tarefa da memória."
p. 172
"para aprender uma linguagem qualquer, é preciso submeter-se a um adestramento difícil, que substitua nossas reações naturais e instintivas por uma série de mecanismos dos quais encontramos o modelo totalmente fora de nós, na sociedade."
p. 174
"O ritmo é um produto da vida em sociedade. O indivíduo sozinho não saberia inventá-lo."
p. 177
"se a arte imita assim a natureza, é porque dela retira uma parte de seus efeitos."
p. 177 a 178
"O leigo isola a melodia da sonata. Inversamente, o músico separa a canção das outras canções, ou numa mesma canção separa a melodia das palavras, e mesmo alguns compassos de melodia inteira. Assim separada, despojada, desfalcada de parte de sua substância, a melodia vai ser agora levada para [a] sociedade dos músicos, e logo se apresentará sob novo aspecto. Associada a outras seqüências de sons, fundida talvez a um outro conjunto, seu valor, o valor de suas partes, será determinado por suas relações com esses elementos musicais que lhe eram estranhos até então."
p. 179
"[A música é] uma operação de aritmética oculta feita por um espírito que ignora que conta." (Leibniz, sem referência de obra)
p. 180
"Quer se leia, quer se execute, não basta compreender os sinais: um artista os interpreta à sua maneira, inspirando-se em suas disposições afetivas do momento, ou de sempre."
/
"as regras não substituem o gênio".
p. 181
"não é necessário ser iniciado nas regras dessa arte, ser capaz de ler à primeira vista as notas, para sentir prazer num concerto."
/
"não pensa em nada, [...] lhe basta ouvir, [...] está perpetuamente no presente, e [...] todo o esforço de pensamento o distrairia daquilo que importa somente, isto é, a música.
/
"a melhor música é aquela que posso ouvir pensando naquilo que me faz mais feliz. (Stendhal, Lettres à ses amis)
/
"quando uma música me alça a pensamentos elevados sobre o assunto que me ocupa, qualquer que seja, essa música é excelente para mim. Toda música que me permite pensar na música é medíocre para mim." (Stendhal, Lettres à ses amis)
p. 181 a 182
"qualquer que seja nossa disposição interior, parece que toda música, em certos momentos, pode mantê-la, aprofundá-la, aumentando sua intensidade. Tudo se passa como se a sucessão dos sons nos apresentasse uma espécie de matéria plástica que não tem significação definida, mas que está prestes a receber aquela que nosso espírito estivesse disposto a dar-lhe."
p. 183
"Haveria então dois modos de ouvir música, a atenção se concentrando nos sons e suas combinações, isto é, sobre os aspectos e objetos musicais, propriamente ditos, ou o ritmo e a sucessão de notas sendo apenas um acompanhamento de nossos pensamentos que arrastam em seu movimento."
/
"Nós nos enganamos certamente se acreditamos que os compositores pegam sua pena e o papel com a modesta intenção de expressar isto ou aquilo, descrever, pintar. Mas, não façam pouco caso das influências contingentes e das impressões exteriores."
p. 184
"para um escultor, todo ator se torna uma escultura imóvel, para um pintor todo poema é um quadro, e o músico transmuda todo quadro em sons." (Robert Schumann, Gesammele Schriften über Musik und Musiker)
p. 187
"não é possível reter uma massa de lembranças em todas as suas sutilezas e nos mais precisos detalhes, a não ser com a condição de colocar em ação todos os recursos da memória coletiva."

Fichamento do Capítulo II do livro de Bourdieu "O Poder Simbólico"

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomas. 12. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. (cap. II)
Convenções:
p. - número da página
/ - simples separação antes de outra citação, sem ligação de sentido, na mesma página
[...] supressão de palavras ou frases para reduzir a citação sem perder o sentido

Citações
P. 18
“Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades.”
/
“Mas é talvez a melhor e a única maneira de se evitar decepções muito mais graves – como a do investigador que cai do pedestal, após bastantes anos de automistificação, durante os quais despendeu mais energia a tentar conformar-se com a ideia exagerada que faz da pesquisa, Istoé, de si mesmo como investigador, do que a exercer muito simplesmente o seu ofício.”
/
“exposição sobre uma pesquisa [...] É um discurso em qua a gente se expões, no qual se correm riscos...”
P.19
“O homo academicus gosta do acabado. [...] descobri que pintores como Couture, o mestre de Manet, tinham deixado esboços magníficos, muito próximos da pintura impressionista- que se fez contra eles – e tinham muitas vezes estragado obras julgando dar-lhes os últimos retoques, exigidos pela moral do trabalho bem feiot, bem acabado, de que a estética acadêmica era a expressão.”
P.20
“O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de pôr em jogo ‘coisas teóricas’ muito importantes a respeito de objectos ditos ‘empíricos’ muito preciso, frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios.[...] O sociólogo poderia tornar sua a fórmula de Flaubert: ‘pintar o medíocre’.
É preciso saber converter problemas muito abstractos em operações científicas inteiramente práticas[...]”
P. 21
“Só se pode realmente dirigir uma pesquisa[...] com a condição de a fazer verdadeiramente com aquele que tem a responsabilidade directa dela: o que implica que se trabalhe na preparação do questionário, na leitura dos quadros estatísticos ou na interpretação dos documentos, que se sugiram hipóteses quando fora caso disso, etc.- é claro que não se pode, nestas condições, dirigir verdadeiramente senão um pequeno número de trabalhos, e aqueles que declaram ‘dirigir’ um grande número deles não fazem verdadeiramente o que dizem.”
P.23
“O habitus científico é uma regra feita homem ou, melhor, um modus operandi científico que funciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estas normas na sua origem [...] O sociólogo que procura transmitir um habitus científico parece-se mais com um treinador desportivo de alto nível do que com um professor da Sorbone. Ela fala pouco em termos de princícpio e de preceitos gerais – pode, decerto enunciá-los, com eu fiz em Le Métier de sociologue, mas sabendo que é preciso não ficar por aí (nada há pior, em ceeto sentido, que a epistemologia, logo que ela se transforma em tema de dissertação ou em substituto da pesquisa). Ele procede por indicações prática, assemelhando-se nisso ao treinador que imita um movimento[...]ou por ‘correções’ feitas à prática[...].”
P. 24-25
“procede-se frequentemente como se o que pode ser reivindicado como evidence fosse evidente. O que se faz em função de uma rotina cultural, a maior parte das vezes imposta e inculcada pela educação [...]. O feticismo da evidence leva à recusa dos trabalhos empíricos que não aceitem como evidente a própria definição de evidence:[..].”
P. 25
“a mais elementar sociologia da sociologia ensina que, frequentemente, as condenações metodológicas são uma maneira de tornar a necessidade em virtude, de fingir que ignora [...] o que, muito simplesmente, se ignora.”
P. 26
“Pode-se, por exemplo utilizar a análise das correspondências para fazer uma análise de discurso[...] ou combinara a mais clássica análise estatística com um conjunto de entrevistas em profundidade ou de observações etnográfica [..]. a pesquisa é uma coisa demasiado séria e demasiado difícil para se poder tomar a liberdade confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor, e se ficar privado deste ou daquele recurso entre os vários que podem ser oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais da disciplina- e das disciplinas vizinhas: etnologia, economia, história [...].”

P. 26-27
“a construção do obecto [...] não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de acto teórico inaugural, e o programa de observações ou de análises por meio do qual a operação se efectua não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correcções, de emendas, sugeridos por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas.”
P. 28-29
“é preciso pensar relacionalmente. Com efeito, poder-se-ia dizer deformando a expressão de Hegel: o real é relacional.”
/
“É para romper com este modo de pensamento – e não pelo prazer de colar um novo rótulo em velhos frascos teóricos – que empregarei o termo campo de poder (de preferência a classe dominante, conceito posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder [...].”
P. 30
“Procurar não cair na armadilha do objecto pré-construído não é fácil, na medida em que se trata, por definição, de um objecto que me interessa, sem que eu conheça claramente o princípio verdadeiro desse ‘interesse’.”
P. 31
“Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, poque ela nada é fora das suas relações com o todo.”
/
“[...]o limite de um campo é o limite dos seus efeitos ou, em outro sentido, um agente ou uma instituição faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que nele os produz[..].”
P. 32
“Construir o objecto supõe também que se tenha, perante os factos, uma postura activa e sistemática.”

P. 33
“o modus operandi [...] transmitir-se-á, de certa maneira, praticamente, sem que haja necessidade de o explicitar teoricamente, pelo acto repetido a respeito de casos diferentes. Ca um, ao ouvir os outros, pensará na sua própria pesquisa, e a situação de comparação institucionalizada que é assim criada [...]. No tempo em que eu era mais directivo, aconselhava firmemente os investigadores a estudarem pelo menos dói objectos[..].”
P. 35
“Uma prática científica que se esquece de se pôr a sim mesma em causa não sabe, propriamente falando, o que faz. Presa no objecto que toma para objecto, ela descobre qualquer coisa do objecto, mas que não é verdadeiramente objectivado pois se trata dos próprios princípios do objecto.”
P. 37
“descobrir-se-á que o problema, aceite como evidente pelo positivismo vulgar [...] foi socialmente produzido num trabalho colectivo de construção da realidade social e por meio desse trabalho[...].”
P. 38-39
“ Nas ciências sociais, como se sabe, as rupturas epistemológicas são muitas vezes rupturas sociais, rupturas com as crenças fundamentais de um grupo e, por vezes, com as crenaçs fundamentais do corpo de profissionais, com o corpo de certezas partilhadas que fundamenta a communis doctorum opinio.”
P. 41
“enquanto você permanecerem na ordem da aparência socialmente constituída, todas as aparências estarão a vosso favor, convosco, - até mesmo as aparências de cientificidade. Pelo contrário, desde que vocês comecem a trabalhar num verdadeiro objecto construído, tudo se tornará difícil: o progresso ‘teórico’ gera um acréscimo de dificuldades ‘metodológicas’. Os ‘metodólogos’ não terão dificuldades em encontrar o pequeno erra nas operações que é preciso fazer para apreender, assim-assim, o objecto construído.”
P. 42
“é preciso muitas vezes, para se fazer ciência, evitar as aparências de cientificidade, contradizer mesmo as normas em vigor e desafiar os critérios correntes do rigor científico[...].”
P.43
“Entre essas críticas, preciso dar um lugar à parte àqueles que vêm da etnometodologia, embora, em certas formulações, elas se confundam com as conclusões dos mais irresponsáveis leitores dos filósofos franceses contemporâneos, que reduzem os discursos científicos a estratégias retóricas a respeito de um mundo reduzido, ele próprio, ao estado de texto.”
P. 44
“esta espécie de double bind a que todo o sociólogo digno deste nome está constantemente exposto: sem instrumentos de pensamento oriundos da tradição douta, ele não passa de um amador, de um autodidacta, de um sociólogo espontâneo – e nem sempre o mais bem colocado, tão evidentes são, frequentemente, os limites da sua experiência social -, mas estes instrumentos fazem que ele corra um perigo permanente de erro, pois se arrisca a substituir a doxa ingênua do senso comum pela doxa do senso comum douto, que atribui o nome de ciência a uma simples transcrição do discurso de senso comum.”
P. 47
“cada vez com mais freqüência, a ciência arrisca-se a registrar, sem saber, os produtos de práticas que invocam a seu favor a ciência.”
P. 48
“O termo ideologia pretende marcar a ruptura com as representações que os próprios agentes querem dar da sua própria prática: ele significa que não se deve tomar à letra as suas declarações, que eles têm interesse, etc.; mas, na sua violência iconoclasta, ele faz esquecer que a dominação à qual é preciso escapar para o objectivar só se exerce porque é ignorada como tal; o termo ideologia significa também que é preciso reintroduzir no modelo científico o facto de a representação objectiva da prática dever ter sido construída contra a ‘verdade objectiva’ desta experiência ser inacessível à própria experiência.”
P. 49
“A ruptura é, com efeito, uma conversão do olhar e pode-se dizer do ensino da pesqusa em sociologia que ele deve em primeiro lugar ‘dar novos olhos’ como dizem por vezes os filósofos iniciáticos.”
P. 50
“o director de pesquisa, se quisesse cumprir verdadeiramente a sua função, deveria desempenhar por vezes o papel, efectivamente perigoso e em qualquer caso injustificável, de ‘director de consciência’.
/
“Muitas vezes, é só ao cabo de um verdadeiro trabalho de socioanálise que se pode realizar o casamento ideal de um investigador e do seu ‘objecto’, por meio de toda uma séroe de fases de sobreinvestmento e de desinvestimento.”
P. 53
“A consciência dos limites da objectivação, objectivista levou-me a descobrir que existe no mundo social, em especial no mundo universitário, toda uma série de instituições que produzem o efeito de tornar aceitável a distância entre a verdade objectiva e a verdade vivida daquilo que se faz e daquilo que se é[...].”
/
“Como passar para além de uma descrição inteligente, mas sempre sujeita a ‘fazer pleonasmo com o mundo’ como dizia Mallarmé?
P. 55
“ O espaço de interacção é o lugar da actualização da intersecção entre os diferentes campos.
P. 56-57
“O que resulta de todas estas relações objectiva, são relações de força simbólicas que se manifestam na interacção em forma de estratégias retóricas[...]”

P. 57
“quando se trata, numa palavra, de se situar meta, acima de, unicamente pela força do discurso, é-se tentado a fazer uso da ciência das estratégias que os diferentes actores aplicam, a fim de fazerem triunfar a sua ‘verdade’ para dizer a verdade do jogo, e par triunfarem assim no jogo.”
P. 58
“É preciso, de certo modo, ter-se renunciado à tentação de se servir da ciência para intervir no objecto, para se estar em estado de operar um visão global que se tem de um jogo passível de ser apreendido como tal porque se saiu dele.[...] A objectivação participante, sem dúvida, o cume da arte sociológica, por pouco realizável que seja, só o é se se firmar numa objectivação tão completa quanto possível do interesse a objectivar o qual está inscrito no facto da participação, e num pôr-em-suspenso desse interesse e das representações que ele induz.”

Caminhos e Descaminhos que Conduzem a Sonora: política de incentivo à colonização do norte de Mato Grosso do Sul a partir de 1970.




Artigo apresentado no Congresso Internacional de História em Maringá-PR.
Título: Caminhos e Descaminhos que Conduzem a Sonora: política de incentivo à colonização do norte de Mato Grosso do Sul a partir de 1970.
Mestranda: Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa.
Orientador: Prof. Dr. Fernando Tadeu de Miranda Borges.
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso
Instituição Financiadora: CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

A proposta deste trabalho é compreender as condições históricas que possibilitaram a colonização do Vale do Correntes, região de fronteira entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, como conseqüência de um processo de mudança em toda a estrutura do campo brasileiro, apontando momentos mais remotos que são importantes na compreensão do assunto e dando ênfase sobretudo, à modernização agrícola e aos efeitos da mesma no período posterior aos anos de 1970. Ao traçar um caminho para compreender essa realidade remeto-me à obra de Josep Fontana para quem “(...) As nossas recordações não são os restos descoloridos de uma imagem fotográfica que reproduz fielmente a realidade, mas sim uma construção que fazemos a partir de fragmentos de conhecimento que já eram, na sua origem, interpretações da realidade e que, ao voltarmos a reuni-los reinterpretamo-lo à luz de novos pontos de vista (...)”(Fontana,1998).
Sendo assim, para se chegar a interpretar a realidade, há uma necessidade de investigá-la e, foi desta forma que nos propomos a contribuir para com este “fazer História”, que parta do acontecimento com tudo que tem de complexo e peculiar, não para isolá-lo como algo único, mas sim para colocar à prova o marco interpretativo e enriquece-lo ao mesmo tempo (FONTANA, 1998). Para realizarmos esta pequena construção histórica, tomamos como referência para posteriores interpretações, autores diversos, que tratam da questão agrária brasileira, bem como dos processos de transformação da sociedade, tais como colonização, burocratização, modernização e industrialização que, de acordo com Barros (2004) compõem o vasto campo da História Social. Compartilho das ideias de Albuquerque Júnior para quem os lugares que interessam para o historiador não é aqueles que escapariam do tempo, que seria um pedaço de passado encravado no presente, como uma cena estática e muda, como “lugares de memória” ou lócus de tradições, mas lugares entendidos como palimpsestos, como fruto da sedimentação de camadas sucessivas de relações sociais e de sentidos culturais (2008:85).
As análises aqui realizadas privilegiam inicialmente a questão agrícola/agrária brasileira sendo que um tempo maior foi dedicado a compreender a formação da agroindústria canavieira, caminho percorrido para que fosse possível entender o processo de concentração de terra e de renda na região estudada, a perspectiva é de buscar reconstruir a História local, que ao que tudo indica foi fortemente influenciada pela formação dos latifúndios e posteriormente do complexo agro-industrial (CAI), o que pode possibilitar melhor compreensão acerca da expansão econômica do Vale do Correntes, em Mato Grosso do Sul (região onde se localiza o município de Sonora) a partir dos anos de 1970. Isso sem perder de vista os aspectos de mudanças sociais e culturais que operam consoantes ao processo apontado, cito mais uma vez Albuquerque Júnior para quem o olhar do historiador estava treinado para perceber todos os signos da temporalidade, do passar do tempo, da mudança, da transformação, do desenvolvimento, do progresso, mas bem menos treinado para tratar estes fenômenos temporais como fenômenos que também atingem, constroem e modificam espacialidade (2008:102), a pesquisa ora iniciada busca justamente entender essa transformação espacial.
A problemática mais importante que se coloca é a de entender os problemas no campo brasileiro, especificamente na região do extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul, na região de fronteira com o estado de Mato Grosso. A questão agrária brasileira para Prado Júnior (1998) seria decorrente do processo de colonização européia, empreendido a partir do século XVI. O autor tratou da formação latifundiária brasileira, apontando o papel do Brasil no sistema exploratório internacional no qual estava inserido e que era o de prover o mercado europeu de produtos tropicais. Ressalta-se o grande peso dado por Caio Prado Junior ao fator econômico na formação da sociedade brasileira, segundo ele, para que se instalasse a lavoura canavieira, no território brasileiro, procedeu-se a uma destruição da cultura e da dignidade dos povos aqui existentes e dos negros vindos do continente africano, para trabalharem como escravos neste território. O que se seguiu a partir do nascimento da agricultura mercantil no Brasil foi o desrespeito contra o ser humano que passou a ser inserido como objeto naquele sistema econômico exploratório. A agricultura desse tipo no Brasil, segundo o autor, teve seu início com a plantação da cana-de-açúcar que, para comportar os interesses do latifúndio, requeria vasta extensão de terra para o seu cultivo. Além disso, a escravidão do negro e do índio eram necessários para a satisfação de outros interesses mercantilistas e racistas. Para Martins (2009:158) adiante da fronteira demográfica da “civilização”, estão as populações indígenas, sobre cujos territórios avança a frente de expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente pioneira, dominada não só pelos agentes da civilização, mas, nela, pelos agentes da modernização, sobretudo econômica, agentes da economia capitalista (...) da mentalidade inovadora, urbana e empreendedora.
A lavoura canavieira instalada no Brasil como fruto do processo de colonização e exploração, sempre esteve associada a um processo manufatureiro que resultava no produto colonial que diferentemente de outras (café, algodão, fumo, cacau) sempre implicou na sua transformação no próprio local de implantação. A atividade fabril sempre se manteve sob controle do proprietário fundiário, desta forma foram constituídos os engenho (RAMOS, 1991), que se confundiam inicialmente com as sesmarias e caracterizou a ocupação da faixa litorânea do território brasileiro.
Quanto à cana-de-açúcar, a principal região produtora no período passou a ser São Paulo. Para o cultivo da mesma se promoveu a devastação da mata em larga escala, propiciando o surgimento de terras estéreis e de desertos. O que se pode notar nesse processo é o descaso com os recursos naturais: mata destruída e solo explorado à exaustão.
Para se promover esta mudança na forma capitalista de exploração no país, recorreu-se ao capital estrangeiro. Esse processo ocorrido fundamentalmente entre 1870 e 1930 promoveu uma “modernização conservadora” no campo. O latifúndio foi mantido e o Estado foi chamado a financiar a transformação do engenho burguês em engenhos maiores, o que propiciou o surgimento das usinas.
O campo começou a se industrializar e aos poucos passou a ser entendido como um conjunto de atividades econômicas que incluíam a terra como meio de produção(Muller, 1989), sob o capitalismo, a partir daí, ocorreu gradativamente, a formação dos complexos agro-industriais, o que não resolveu o problema do abastecimento interno do país, pelo contrário. A modernização dos latifúndios e a conseqüente formação do CAIs – Complexos Agro-industriais da atualidade, aliados a modernização da agricultura, o implemento de máquina e equipamentos modernos aumentaram a produtividade das grandes propriedades (que produziam para alimentar o mercado externo), acabaram gerando exclusão social e aumentando o desemprego no campo e na cidade.
A partir de 1930, o Estado passou a controlar e direcionar melhor a cultura da cana. A fase inicial da ação do Estado no setor, está associada à crise açucareira de 1929, (Bray; Ferreira; Ruas, 2000) momento que o país perdeu parcela do mercado exterior e necessitou deslocar ainda mais o açúcar produzido para o mercado interno, principalmente o açúcar nordestino, distante do principal mercado nacional, o Centro-Sul em expansão.
O retorno do Brasil ao comércio exportador, com envergadura, se deu a partir de 1960. a política que orientou o desenvolvimento da agroindústria canavieira no Brasil, nesta década, teve por objetivo o incremento das exportações de açúcar e a ampliação do parque industrial e das lavouras de cana. O favorecimento do Estado à iniciativa privada concentrada, alcançou outros setores da economia brasileira: a cultura da soja, por exemplo, assim como a cana-de-açúcar, a soja está inserida no complexo agroindustrial e recebeu o apoio do Estado que concedeu subsídios para a instalação de indústrias para o seu beneficiamento. Segundo Maitelli e Zamparoni (2007), o Estado de Mato Grosso, situado na região do Centro-Oeste do Brasil, teve, nas últimas décadas, importantes modificações na sua paisagem natural, originárias do modelo de desenvolvimento do país, cujas bases consistiram na incorporação de novas terras agrícolas para impulsionar a ocupação da Amazônia, a cultura da soja também foi um importante veículo de transformação do espaço ora estudado.
Durante a Ditadura Militar e a Nova República, o crédito rural subsidiado e os preços mínimos continuaram voltados primordialmente, para a modernização conservadora da agropecuária, finalmente, sob o Neoliberalismo, parcela do crédito rural ficou a cargo dos bancos privados e das agroindústrias (Bray; Ferreira; Ruas, 2000). Com a abertura econômica para o exterior, produtos agrícolas estrangeiros, ingressaram em grande quantidade no mercado nacional, criando uma crise agrícola, normalmente por serem melhores e mais baratos, mas, principalmente por causa da sobrevalorização do real frente ao dólar. Esse quadro passou a ser revertido quando a moeda brasileira sofreu brusca desvalorização frente à moeda dos Estados Unidos, de 1998 em diante.
A manutenção do PROÁLCOOL, a exportação de açúcar, o crescimento da urbanização brasileira e a adição de álcool carburante à gasolina comum são mercado e ganhos atuais para a expansão da agroindústria canavieira, mas não para os trabalhadores rurais em geral, estes continuaram enfrentando os efeitos da expansão da modernização agrária conservadora, que PALMEIRA (1989) chamou de modernização perversa.. Quanto à agricultura canavieira, houve neste setor uma desvalorização do trabalho com o crescimento do número de bóias-frias. No município de Sonora que se encontra na região que é objeto do presente estudo, o desemprego é uma realidade e se reflete em seus desdobramentos na exclusão de um grande número de trabalhadores dos postos de trabalho e na presença de andarilhos no perímetro urbano.
O meio ambiente e as pessoas não ficaram imunes a todos esses acontecimentos e passaram a ser penalizados, principalmente por causa das queimadas e dos subprodutos agro-industriais, por vezes jogados sem tratamento e impunemente no meio ambiente. A polêmica sobre as queimadas da cana e os impactos ambientais por ela causados tem apressado o processo de substituição dos cortadores por máquinas que fazem a colheita da cana sem queimá-la, o que inevitavelmente irá ampliar o número de desempregados.
Neste contexto de mazelas sociais provocadas pela concentração de terras e modernização conservadora da agropecuária, supomos que a solução não está nos complexos agro-industriais, retomando o clássico PRADO Jr. o primeiro e principal passo, no momento, para sairmos dessa situação ao mesmo tempo dolorosa e humilhante para nosso país é (...) a modificação das condições reinantes no campo brasileiro e a elevação dos padrões de vida humana que nele dominam. (...)
No texto, “ A História Legal da Terra na Fronteira e a Questão da Autoridade”, FOWERAKER (1982), trata da questão da ocupação de terras no Brasil, desde o período da ocupação colonial, passando pela discussão da Lei de Terras de 1850 e tratando da questão política que está intrinsecamente ligada à história legal das terras. O texto aponta o papel do posseiro nesse processo de ocupação.
Entretanto, para que seja possível tratar da questão de posse, propriedade e titulação, faz-se necessária a compreensão da importância que terra adquiriu no mundo contemporâneo, mais especificamente na sociedade brasileira atual, ressaltando-se a necessidade de fugir de um quase inexorável maniqueísmo do qual muitas vezes a tentativa de compreensão da realidade se torna vítima. Sendo assim, dentre as várias definições é necessário salientar uma mais contemporânea em que a terra é tida como: meio de produção e, considerando o caráter neoliberal que permeia todas as modernas relações, inclusive a relação do ser humano com a terra, o que se processa é a intensa mercantilização desse bem. Segundo Martins (1986) “antes do advento do capitalismo, nos países europeus, o uso da terra estava sujeito a um tributo, ao pagamento da renda em trabalho, espécie ou dinheiro. Essas eram formas pré-capitalistas de renda decorrentes unicamente do fato de que algumas pessoas tinham o monopólio da terra, cuja utilização ficava, pois, sujeita a um tributo. O advento do capitalismo não fez cessar essa irracionalidade. Ao contrário, a propriedade fundiária, ainda que sob diferentes códigos, foi incorporada pelo capitalismo, contradição essa que se expressa na renda capitalista da terra.”
Nesse ponto é possível retomar a discussão acerca de posse que, no sentido original, é o resultado de um processo de ocupação a partir do qual se dá o assenhoreamento de coisa sem dono. Nesse sentido, o valor da propriedade assenhoreada seria o equivalente ao trabalho empregado na mesma, porém de acordo com o caráter neoliberal exposto anteriormente, a terra deixou de ter apenas o valor do trabalho nela empregado e passou a ser expediente de lucros através da especulação.
FOWERAKER (1982), aponta que ocorreu uma mudança no controle das terras devolutas, que por sua vez vão para o poder da iniciativa privada para o capital particular basicamente. Ressalta-se aqui a intrínseca relação entre Terra e Poder, assunto brilhantemente tratado por Gislaine Moreno no livro “Terra e Poder em Mato Grosso: política e mecanismos de burla(1892-1992)” que dentre inúmeras questões trata dos efeitos da apropriação capitalista de grandes porções de terra no estado de Mato Grosso. Na medida em que o Estado transfere ou simplesmente, facilita a aquisição de terras para os grandes grupos de interesses econômicos particulares, acaba por diminuir as possibilidades reais de o posseiro conseguir uma propriedade legal de terra (Moreno,2007). Esse expediente, fez com que determinados grupos aumentassem seu poder se utilizando muitas vezes da força para alcançar seus objetivos, burlando desta forma o que está convencionado pela sociedade (lei). FOWERAKER aponta que, a história da legalização das terras em mãos de particulares, é uma história política, e neste ponto é possível retomar a discussão do poder considerando que cargos públicos também são formas de amealhar poder e de utilizar a lei em benefício próprio. O autor faz alusão a um problema brasileiros dos anos de 1980, que nos parece ainda muito pertinente aos problemas fundiários da atualidade. Nesta caso específico, acredita-se que o estudo desse autor é bem empregado na tentativa de compreender a formação latifundiária e excludente da região do Vale do Correntes. O peso maior da participação do Estado e como conseqüência do poder político na decisão sobre o controle das terras brasileiras ocorreu, sobretudo, na forma de fomentos, bastante intensificados pelo governo entre os anos de 1940 e 1950, e que ainda estão presentes na atualidade, sob a forma de financiamentos bancários, crédito, micro-crédito e bolsas com fins variados.
No tocante ao tema específico do presente trabalho, os mencionados fomentos estatais influenciaram enormemente na conformação econômica da região, pois no ano de 1975 foi instalada no Vale do Correntes uma Companhia Agrícola, responsável por um processo de expulsão e desapropriação do pequeno produtor que resultou num processo de concentração fundiária sem precedentes na região.
A interferência do Estado brasileiro no controle e direcionamento da cultura canavieira passou a ocorrer no início dos anos de 1930 (Bray; Ferreira & Ruas, 2000), mas a partir de 1960 esse controle se deu com maior intensidade no Centro-Oeste. COSTA (mimeo) mostrou que esta década foi o marco histórico inicial das transformações na agricultura, promovida por um determinado modelo de sociedade que se pretendia construir, no qual uma maior produção agrícola supostamente traria resultados positivos para a estratégia de desenvolvimento adotada. E isso não foi obtido nem no estado de Mato Grosso, nem no estado de Mato Grosso do Sul, na perspectiva da maioria dos trabalhadores rurais destes estados. A agricultura brasileira tem um problema chave, pois ao mesmo tempo que precisa fortalecer o mercado externo, necessita também aumentar a produtividade de bens de consumo interno. Porém, com a modernização conservadora da agricultura, tem-se uma redução no número de pequenas propriedades, que são as que produzem os bens de consumo interno, visto que nos “CAIs” o que prevalece é a produção em larga escala dos produtos de exportação e esses avançaram em área sobre a pequena produção. Segundo NASCIMENTO(1997), o aspecto principal dessa “modernização via Estado”, promoveu uma expansão subsidiada do latifúndio, que se modernizou (mecanização, utilização de novos insumos), tornando-se capaz de produzir em larga escala, porém não houve geração de empregos correspondente e o que se efetivou foi a expulsão, quando não expropriação do trabalhador do campo. Este não é o ponto de vista de MULLER(1989), para quem o complexo agro-industrial pode atender tanto o mercado externo quanto o interno na produção de gêneros de subsistência. Outro ponto de vista contrário ao de MULLER, pauta-se em PRADO Jr.(1998), que ao defender a pequena propriedade, mostrou que o implemento de máquinas e equipamentos modernos (que visam principalmente a produção para abastecer o mercado externo) aumentou a exclusão social no campo, assim como o desemprego. A questão que pretendemos discutir é a degradação social, econômica e ambiental, promovida a partir do processo de concentração fundiária, promovida pela ação das frentes de expansão da fronteira agrícola, que além de privilegiar um número restrito de pessoas é prejudicial ao desenvolvimento econômico da região, na medida que a pequena propriedade que vem perdendo espaço para os CAIs é aquela que produz majoritariamente os gêneros de consumo dos quais as pessoas necessitam.
O presente estudo se pauta na análise dos processos relacionados a questões relacionadas à terra, à colonização e migração e suas relações com os conceitos de Fronteira, Zonas de Expansão, Zonas Pioneiras desenvolvidos por autores como Swain (1988), Monbeig (1984), Waibel (1979) e Martins (2009).
Para Tânia Navarro Swain, “A apropriação da terra e a dominação da força de trabalho foram os pilares da concentração de riqueza no Brasil, a base do poder regional e o amparo ao Estado oligárquico. Dentro deste contexto, a pequena propriedade representa uma ameaça para o sistema estabelecido, tendo em vista o caráter monoexportador do setor dinâmico da economia que exige mão-de-obra abundante a custo pouco elevado, e novas terras férteis.(1988: 21)
Sustentamos o presente estudo em autores que analisam processos relacionados a questões da terra, da colonização e migração e suas relações com os conceitos de Fronteira, Zonas de Expansão, Zonas Pioneiras desenvolvidos por autores como Tânia Navarro Swain, para quem “a apropriação da terra e a dominação da força de trabalho foram os pilares da concentração de riqueza no Brasil, a base do poder regional e o amparo ao Estado oligárquico. Dentro deste contexto, a pequena propriedade representa uma ameaça para o sistema estabelecido, tendo em vista o caráter monoexportador do setor dinâmico da economia que exige mão-de-obra abundante a custo pouco elevado, e novas terras férteis.(1988: 21)
No tocante à compreensão sobre fronteiras utilizamos os conceitos de criados por Waibel. segundo Waibel, a questão é se ainda “temos tais zonas pioneiras no Brasil e, em caso afirmativo, onde estão localizadas (...) o que exige uma melhor definição dos conceitos de frontier e pionner” (1979: 281).
Segundo Waibel, o conceito de pioneiro “significa mais do que o conceito de frontiersman, isto é, do indivíduo que vive numa fronteira espacial. Nem o extrativista e o caçador, nem o criador de gado, podem ser considerados como pioneiros; apenas o agricultor pode ser denominado como tal, estando apto a constituir uma zona pioneira. Somente ele é capaz de transformar a mata virgem numa paisagem cultural e de alimentar um grande número de pessoas numa área pequena. , 1979: 282) emprega o conceito de pioneiro também para indicar a introdução de melhoramentos no campo da técnica e da vida espiritual. Para este autor
“só falamos de uma ‘zona pioneira’ (...) quando subitamente por uma causa qualquer a expansão da agricultura se acelera, quando uma espécie de febre toma a população das imediações mais ou menos próximas e se inicia o afluxo de uma forte corrente humana” ( 1979: 282).

De grande relevância ainda para o presente estudo foi a obra de Martins (2009), para quem o termo fronteira, no Brasil, é tratado de forma particular por geógrafos e antropólogos. Para os primeiros, como um termo que designa uma zona pioneira ou uma frente pioneira. Os segundos, sobretudo a partir dos anos cinqüenta, definiram essas frentes de deslocamento da população civilizada e das atividades econômicas de algum modo reguladas pelo mercado, como frentes de expansão.
Buscando explicitar melhor essa diferença Martins (2009) apresenta a posição assumida por diferentes autores, mas, nos limites desse estudo, restringimo-nos a apresentar as considerações de Martins sobre os conceitos defendidos por Darcy Ribeiro, Pierre Monbeig, Roberto Cardoso de Oliveira, Arthur Nehl Neiva.
A designação de frentes de expansão formulada por Darcy Ribeiro, como “fronteiras de civilização”, tornou-se uso corrente até mesmo entre antropólogos, sociólogos e historiadores que não estavam trabalhando propriamente com situações de fronteira da civilização. Ela expressa a concepção de ocupação do espaço de quem tem como referência as populações indígenas, enquanto a concepção de frente pioneira não leva em conta os índios e tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor.
Tais definições parecem apontar que a concepção dos antropólogos sobre a expansão é mais ampla, pois incorpora os índios, desconsiderados pelos geógrafos.
Pierre Monbeig define os índios alcançados (e massacrados) pela frente pioneira no oeste de São Paulo como precursores dessa mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente à espera da civilização que acabaria com eles. A ênfase original de suas análises estava no reconhecimento das mudanças radicais na paisagem pela construção de ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande escala, como o café e o algodão.
A concepção de frente pioneira, para Martins, “compreende implicitamente a ideia de que na fronteira se cria o novo, nova sociabilidade, fundada no mercado e na contratualidade das relações sociais. (...) A frente pioneira é também a situação espacial e social que convida ou induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança social. (2009), para Martins , a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade, do conflito de terras ou conflito social: “Na minha interpretação, a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela uma realidade singular, À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado e os camponeses pobres, do outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro (...) a fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte antagônica do Nós...” (Martins, 2009).
No que diz respeito à localização das zonas pioneiras Waibel considera que “No Brasil as zonas pioneiras não são um fenômeno primário da conquista de novas terras, mas uma conseqüência da mesma. (...) Nestas áreas insuladas de mata os colonos penetraram não só a partir do leste, mas, também, do sul e do norte, e em parte do oeste, fazendo assim uma penetração pela retaguarda.(Waibel, 1997).
A partir da reflexão dos conceitos de fronteira, zonas pioneiras e zonas de expansão dos autores supramencionados, Martins (2009) sente-se à vontade para fazer uma primeira datação histórica: adiante da fronteira demográfica ou da “civilização”, estão as populações indígenas que sofrem as conseqüências dos processos de expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente pioneira, dominada não só pelos agentes da civilização, mas, também, pelos agentes da modernização que se constituem em agentes da economia capitalista que vai além da economia de mercado. São agentes de mentalidade inovadora, urbana e empreendedora. Ao que tudo indica essa mentalidade esteve presente entre os agentes de colonização da região estudada, assunto que exigirá uma atividade intelectual de maior profundidade e que por ora são caminhos pelos quais ainda dou meus primeiros passos.




Referência Bibliográfica

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MONBEIG, Pierre. Os pioneiros. In: Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1984. p. 139 – 164.
MORENO, Gislaine. “Terra e Poder em Mato Grosso: política e mecanismos de burla /1882-1992. Cuiabá, MT:Entrelinhas: EdUFMT, 2007.
MAITELLI, Gilda Tomasini & ZAMPARONI, Cleusa Aparecida Gonçalves. “Expansão da Soja na Pré-Amazônia Mato-Grossense: impactos socioambientais”. Cuiabá, MT: Entrelinhas: EdUFMT, 2007.
NASCIMENTO, Flávio Antônio da Silva. “Aceleração Temporal na Fronteira: estudo do caso de Rondonópolis-MT”. Tese de doutorado, São Paulo: História/FFSCH/USP, 1997, p.01 a 25.
PALMEIRA, Moacir.”Modernização, Estado e Questão Agrária”. In: Revista de Estudos Avançados. São Paulo (USP) IEA. Set/Dez. v.03,n. 07,p..87. 1989.
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SWAIN, Tânia Navarro. “ Fronteiras do Paraná: da colonização à migração”. Brasília: Universidade de Brasília, 1988.
WAIBEL, Léo. As zonas pioneiras do Brasil. In: “Capítulos de geografia tropical e do Brasil”. 2ª Ed., Rio de janeiro: FIBGE, 1979. p. 279-311.

(Des) Caminhos que Conduzem a Sonora: ocupação do extremo norte de Mato Grosso do Sul após 1970.

Encontro Regional de História Oral do Centro-Oeste e Amazônia e I Colóquio PROCAD História, Trabalho e Migrações na Universidade Federal de Mato Grosso.

Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa (Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em História da Universidade Federal de Mato Grosso)

Prof. Dr. Fernando Tadeu de Miranda Borges (Professor nos Mestrados em História e Economia da Universidade Federal de Mato Grosso , Diretor da Faculdade de Economia da UFMT e Orientador do presente estudo)



(Des) Caminhos que Conduzem a Sonora: ocupação do extremo norte de Mato Grosso do Sul (Pós-1970)


No tocante à compreensão sobre fronteiras utilizamos os conceitos de criados por Waibel, para quem a questão é se ainda “temos tais zonas pioneiras no Brasil e, em caso afirmativo, onde estão localizadas [...] o que exige uma melhor definição dos conceitos de frontier e pionner” (1979: 281).
De grande relevância ainda para o presente estudo foi a obra de Martins (1997), para quem o termo fronteira, no Brasil, é tratado de forma particular por geógrafos e antropólogos. Para os primeiros, como um termo que designa uma zona pioneira ou uma frente pioneira. Os segundos, sobretudo a partir dos anos cinqüenta, definiram essas frentes de deslocamento da população civilizada e das atividades econômicas de algum modo reguladas pelo mercado, como frentes de expansão.
Para explicitar melhor essa diferença Martins (1997) apresenta a posição assumida por diferentes autores, mas, nos limites desse estudo, restringimo-nos a apresentar as considerações de Martins sobre os conceitos defendidos por Darcy Ribeiro, Pierre Monbeig, Roberto Cardoso de Oliveira, Arthur Nehl Neiva.
A designação de frentes de expansão formulada por Darcy Ribeiro, como “fronteiras de civilização”, tornou-se uso corrente até mesmo entre antropólogos, sociólogos e historiadores que não estavam trabalhando propriamente com situações de fronteira da civilização. Ela expressa a concepção de ocupação do espaço de quem tem como referência as populações indígenas, enquanto a concepção de frente pioneira não leva em conta os índios e tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor (Martins, 1997).
Tais definições parecem apontar que a concepção dos antropólogos sobre a expansão é mais ampla, pois incorpora os índios, desconsiderados por um grupo de estudiosos.
Pierre Monbeig define os índios alcançados (e massacrados) pela frente pioneira no oeste de São Paulo como precursores dessa mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente à espera da civilização que acabaria com eles. A ênfase original de suas análises estava no reconhecimento das mudanças radicais na paisagem pela construção de ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande escala, como o café e o algodão. A partir da reflexão dos conceitos de fronteira, zonas pioneiras e zonas de expansão dos autores supramencionados, Martins (1997) se sente à vontade para fazer uma primeira datação histórica: adiante da fronteira demográfica ou da “civilização”, estão as populações indígenas que sofrem as conseqüências dos processos de expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente pioneira, dominada não só pelos agentes da civilização, mas, também, pelos agentes da modernização que se constituem em agentes da economia capitalista que vai além da economia de mercado. São agentes de mentalidade inovadora, urbana e empreendedora (Martins, 1997). Ao que tudo indica essa mentalidade esteve presente entre os agentes de colonização da região estudada, assunto que exigirá uma atividade intelectual de maior profundidade e que por ora são caminhos pelos quais ainda dou os primeiros passos.
A mão-de-obra que fixou residência no núcleo urbano de Sonora, popularmente conhecida como “Princesinha do Norte” , desempenhava funções totalmente voltadas às atividades agrícolas, e foi justamente o trabalho na lavoura que contribuiu para atrair mais migrantes o resultou em relativa expansão populacional. Segundo informações obtidas em pesquisa de campo foi possível constatar as dificuldades iniciais que se colocavam ao trabalhador que se fixou nessa região a partir dos anos de 1970.

“No princípio foi muito ruim porque daqui onde nóis trabalhava dava, mais de 40 Km(...), aí moço nóis ia cedo de madrugada, quando dava 04 horas eu levantava, pegava um trator subia a turma dentro numa carreta da roda dura, nóis ai pra lá, quando era de tarde a gente carregava a carreta de madeira e vinha. (...) mais era uma vida sufrida, que eu nunca vi daquele jeito, cedo de madrugada pra lá e de noite pra cá, um frio. (...) Um dia eu disse, essa vida nossa num ta dano não chegá em casa todo arrebentado por dentro.”


LE GOFF (1994:143) no tocante ao trabalho com as fontes orais e com depoimento como os supramencionados, afirma que “nenhum documento é inocente. Deves ser analisado. Todo documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de discernir o que é “falso”m avaliar a credibilidade do documento, mas também desmistificá-los. Os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estar sujeitos a tratamentos destinados a transformar sua função de mentira em confissão de verdade”. É desta forma que me disponho a trabalhar com as fontes orais em minha caminhada de pesquisa histórica.
Segundo dados coletados na pesquisa de campo, constatou-se a ação de empreiteiros encarregados de trazer trabalhadores de outras regiões para o trabalho no corte de cana durante o período de safra. No decorrer da entrevista com o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais do município o trabalho era contratado por “gatos”. Quando solicitado para que falasse mais a respeito do trabalho das empreiteiras foi obtido a seguinte resposta:

“... empreiteira, a gente fala assim empreiteira, pra não maltratar muito sabe, porque na verdade é gato mesmo, o famoso gato. Então o gato é o seguinte: o que acontece? Quando o trabalhador ganha 10 reais, por exemplo, o gato ganha 20 em cima do trabalho do trabalhador...”

THOMPSON (1992) considera que “a História Oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da História. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria História e revelar novos campos de investigação (...) pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a História um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”. A entrevista com o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais é elucidativo da existência desse lugar na história que as pessoas atribuem a si próprias.
Em um contexto de precarização do trabalho, foi criado em 1985 o Sindicato dos Trabalhadores Rurais que reivindicava que a contratação dos funcionários da usina, se desse por meio do sindicato, atualmente a agência responsável por essa contratação é o SINE (Sistema Nacional de Empregos).
A região em que foi instalada a Companhia Agrícola Sonora Estância (1975) foi palco de concentração de terras e de renda que resultaram na expulsão do pequeno produtor. A intromissão do Estado brasileiro no controle e direcionamento da cultura canavieira passou a ocorrer no início dos anos de 1930 (BRAY; FERREIRA & RUAS:2000), mas foi a partir de 1960 que esse controle se deu com maior intensidade. COSTA (sem data) aponta esta década como o marco histórico inicial das transformações na agricultura, promovida por um determinado modelo de sociedade que se pretendia construir, no qual uma maior produção agrícola supostamente traria resultados positivos para a estratégia de desenvolvimento adotada.
Com a crise do petróleo, houve uma correção parcial dessa rota, em função da necessidade de se reduzir as importações de óleo cru. O Programa Nacional do Álcool, criado em 1975, pelo Governo Federal para socorrer os alcooleiros com problemas de superprodução, foi o indireto responsável pela construção da CASE, segundo informações colhidas na prefeitura o precursor do PROÁLCOOL no Brasil, foi L’amartino Navarro, pois trouxe do exterior a idéia de produção de energia alternativa e sugeriu a implantação de uma usina de produção de álcool atípica, visto que a cultura de cana-de-açúcar possui característica sazonal, que se adequaria à região do cerrado. Atualmente, a CASE continua contando com políticas de incentivo por parte do Governo para a produção de açúcar.
A área total pertencente à CASE é de 28.657 hectares, deste total 6.207 hectares são de área não cultivada, sendo que 17.005 hectares destas terras estão no Estado de Mato Grosso do Sul, município Sonora e o restante no Estado de Mato Grosso, município de Itiquira, sendo que em Itiquira se dedica apenas ao cultivo da soja.
Verifica-se hoje na região de Sonora a presença marcante de grandes propriedades com áreas entre 1.000 e 14.000 hectares, voltadas basicamente para a produção agrícola mecanizada e a criação de gado de corte em regime extensivo. À primeira vista e levado pelas propagandas de desenvolvimento agrícola existentes no município a impressão que nos dá é de que a área de agricultura é predominante no município. Entretanto, como se pode observar na tabela abaixo a situação é inversa:





Tabela 02: Utilização das Terras em Sonora-MS, até o ano 2004

Utilização das Terras Total (ha)
Lavouras Permanentes 8
Lavouras Temporárias 52.836
Lavouras Temporárias em Descanso 419
Pastagens Naturais 34.908
Pastagens Plantadas 205.24
Matas e Florestas 97.236
Matas e Florestas Plantadas -
Áreas Produtivas não utilizadas 5098
Total de Área Cadastrada 401.621
Fonte: Censo Agropecuário 2004 IBGE
Elaboração dos dados: Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa

Ao contrário do que se propaga acerca de uma região altamente produtiva e considerando a partir da ótica de maior racionalidade em torno do desenvolvimento, podemos constatar amparados nos dados fornecidos pela tabela acima, que a região é pecuarista extensiva, possui alta concentração de terras e em decorrência disso, altamente especulativo. O mito de produtividade geral e irrestrita cai rapidamente, se tomarmos a área total destinada à pecuária ( com predominância esmagadora) e dividirmos pela quantidade de bovinos (cabeça) existentes, alcançaremos:
-Área total destina à pastagem: 239.932 hectares, ocupando, aproximadamente 59% da área total.
-Quantidade de bovino (cabeça): 144.854.
Com relação à produtividade pecuarista o resultado é de aproximadamente 1,3 cabeças de gado por hectare de terra. A hipótese inicial era que a expansão da fronteira agrícola causou um processo de modernização conservadora e de exclusão do trabalhador rural e do pequeno proprietário se deu para tornar possível a instalação da propriedade latifundiária o que pode ser indicado pela concentração de terras e de renda, ampliando-se a hipótese inicial, podemos dizer que a concentração das propriedades de terras destinadas à pastagens, revela sua diminuta produtividade e os proprietários foram os maiores responsáveis por esta situação que, provavelmente foi engendrada a partir de processos de expulsão e expropriação.
No mesmo ritmo da expulsão ocorreu a exploração humana, consta em uma de nossas entrevistas que até o ano de 1995, a Companhia Agrícola utilizava mão-de-obra indígena no trabalho de corte da cana:

“ a gente fazia barraco pra índio, porque naquele tempo era só índio(...) aqui trabalhava uma média de 2- 3 mil índio”.

HALBWACHS (1990), discute na obra “Memória Coletiva”, a questão de buscarmos fundamentar questões que já conhecemos por meio do depoimento de outras pessoas, afirma que “ fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos pareçam obscuras. (...) Ora, a primeira testemunha, à qual podemos sempre apelar, é a nós próprios. (...) So o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos”.
Vislumbro nesse momento do presente texto, a possibilidade metodológica de compartilhar das ideias de BAUMAN (2005), para quem “a metodologia utilizada para abordar um assunto busca acima de tudo “revelar” a miríade de conexões entre o objeto da investigação e outras manifestações da vida na sociedade humana”. São essa conexões que tenho buscado fazer em relação ao estudo da região do Vale do Correntes, onde está localizado o município de Sonora no extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul. No intuito de compreender os “(Des) Caminhos que Conduzem a Sonora” bem como as políticas de incentivo ao processo de ocupação do extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul a partir de 1970”, busco entender as questões concernentes ao incentivo governamental na forma de créditos subsidiados que possibilitaram a colonização privada na região do Vale do Correntes, onde atualmente está localizado o município de Sonora ao norte do estado de Mato Grosso do Sul, procuro entender ainda a dinâmica da fronteira que levou à formação daquele espaço, bem como a questão de territorialização, desterritorialização e concepções de identidade com base que trabalham com questões concernentes aos Territórios e Fronteiras.
Até a divisão do estado, a região em foco fazia parte do Estado de Mato Grosso. Em 1977, com a divisão, estudos sobre a agroindústria canavieira se voltaram para a região do Vale do Correntes, onde encontra-se situado o município de Sonora. A mencionada região, ao contar com os créditos estatais referenciados conseguiu a instalação da Usina Aquárius, hoje "Companhia Agrícola Sonora Estância", tendo sido beneficiada com o processo de modernização promovido pelo estado, e se convertido em marco dessa "modernização conservadora", cuja conseqüência imediata acabou ocasionando um redirecionamento de fronteiras que possibilitou a concentração de terras, a intensa pecuarização e a desterritorialização do trabalhador rural.
A formação daquele território e das identidades ou do embate entre essas identidades que se encontram ali presentes parecem fazer parte de um quadro geral da sociedade brasileira dos anos de 1970 é o que aponta o jornal “Defesa” no ano de 1975.


“O norte do Mato Grosso começa a repetir a tristemente conhecida história da colonização do norte do Paraná , onde a luta pela terra, com o sacrifício físico e sanguinolento dos contendores era lugar comum.
Aqui também, já é comum a luta fratricida por plano de terra. Veja-se a estatística criminal e constate-se que 60% dos crimes ocorridos no norte do estado são oriundo de questões de terras.

O artigo do jornal Defesa, de 1975 aponta para a questão da formação do território brasileiro e a violência que a constituição desse território teria gerado, isso pode indicar que os embates teriam levado ao fato de que uma parte da população teria tido acesso a esse território enquanto outra parcela desta população teria sido desterritorializada, não nos cabe nos limites do presente texto discutir as questões de formação de propriedades, em que bases e mediante quais métodos, o que interessa nos limites desta produção diz respeito a uma questão de operacionalização de conceitos e ao tratar da questão da desterritorialização, não poderia deixar de citar HAESBAERT (2006), para quem “o mito da desterritorialização é o mito dos que imaginam que o homem pode viver sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se o movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua reconstrução em novas bases (HAESBAERT:2005)”.


O termo desterritorialização é novo, entretanto os argumentos utilizados em torno dessa questão não são inéditos como aponta HAESBAERT (2005), ao afirmar que “muitas posições de Marx em “O Capital” e no “Manifesto Comunista”revelavam claramente uma preocupação com a “desterritorialização”capitalista, seja a do camponês expropriado, transformado em “trabalhador livre”, e seu êxodo para as cidades, seja a do burguês mergulhado numa vida em constante movimento e transformação, onde “tudo que é sólido desmancha no ar”na famosa expressão popularizada por BERMAN (1986)”.
Neste debate em torna da questão da desterritorialização, Haesbaert alerta para o fato de que para entender a desterritorialização é necessário entender primeiramente o que se concebe como território o autor alerta para o fato de que se “a desterritorialização existe, ela está referida sempre a uma problemática territorial e, consequentemente, a uma determinada concepção de território. Para uns, por exemplo, desterritorialização está ligada à fragilidade crescente das fronteiras, especialmente das fronteiras estatais- o território, aí, é sobretudo um território político. Para outros, desterritorialização está ligada à hibridização cultural que impede o reconhecimento de identidades claramente definidas, um território simbólico, ou um espaço de referência para a construção de identidades”.
Parece-me que a obra de BAUMAN (2005) caminha de um pólo à outro das concepções apontadas por Haesbaert, visto que para ele ao mesmo tempo que considera “a questão da identidade como estando ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao posterior crescimento da sensação de insegurança, com a “corrosão do caráter” que a insegurança e a flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade”. Considera também a identidade “como algo revelado a ser inventado, e não descoberto”. Em suma, o discurso que procura estabelecer uma identidade é claramente ideológico, defende interesses que não são necessariamente legítimos.
Enquanto para Haesbaert a desterritorialização é um mito e o que existe na verdade são territórios múltiplos, Bauman fala da existência de desterritorializados “num mundo de soberania territorialmente assentada. Ao mesmo tempo que compartilham a situação de subclasse, eles, acima de todas as privações, têm negado o direito à presença física dentro de um território sob lei soberana, exceto em “não-lugares” especialmente planejados, denominados campos para refugiados ou pessoas em busca de asilo a fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas “normais”, “perfeitas”, vivem e se movimenta”.
Ao finalizar este texto compartilho com o leitor, algumas reflexões e analogias que considero possíveis em relação à questão do “não-lugar”, penso que os barracões e alojamentos criados especificamente para os trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, em regiões como a do Vale do Correntes, por exemplo, podem ser entendidos como “não-lugares”, pois é o espaço, onde o trabalhador, desterritorializado de seu lugar de origem e sofrendo os efeitos de uma fragmentação da sua identidade e, em alguns casos até mesmo a perda desta, momentos em que chegam à condição de verdadeiros lixos humanos, habitando a tênue fronteira que os separa da condição de seres humanos, os barracões são espaços de uma vida em suspense, à espera sempre do momento de retorno para os locais de origem onde, em geral o que aguarda a maioria desses trabalhadores é uma situação de marginalização social e pobreza. Destaca-se o fato de que a geração que nasceu nos anos de 1970, está sofrendo os efeitos da formação do mundo contemporâneo, especialmente dos anos de 1990, momento em que as pessoas deixam de ser desempregadas e se tornam “redundantes”, ou seja, passam a não ter mais espaço e conforme as palavras de BAUMAN (2005), passam a ser refugo, lixo. A trajetória dos referidos trabalhadores é marcante, visto que o limite entre exclusão e inclusão é muito tênue.




REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA




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BAUMAN, Zygmunt. “Vidas desperdiçadas”. Tradução de Carlos Aberto Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

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