sexta-feira, 23 de abril de 2010

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos - uma história (fichamento)

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Introdução
“Consideramos estas verdades autoevidentes”
“(...) Jefferson (...) ‘Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade’. (...)” P. 13
“(...) Quando a Bastilha caiu, em 14 de julho, e a Revolução Francesa começou para valer, a necessidade de uma declaração oficial ganhou impulso. Apesar dos melhores esforços de Lafayette, o documento não foi forjado por uma única mão, como Jefferson fizera para o o Congresso americano. (...)
O documento tão freneticamente ajambrado era espantoso na sua impetuosidade e simplicidade. Sem mencionar nem uma única vez rei, nobreza ou igreja, declarava que ‘os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem’ são a fundação de todo e qualquer governo. Atribuía a soberania à nação e não ao rei, (...)” P. 14
“(...) apesar da controvérsia provocada pela Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão encarnou a promessa de direitos humanos universais. Em 1948, quando as Nações Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 1º da dizia: ‘Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos’. (...)” P. 15
“Ainda mais perturbador é que aqueles que com tanta confiança declaravam no final do século XVIII que os direitos são universais vieram a demonstrar que tinham algo muito menos inclusivo em mentes. Anos ficamos surpresos por eles considerarem que as crianças, os insanos, os prisioneiros ou os estrangeiros eram incapazes ou indignos de plena participação no processo político, pois pensamos da mesma maneira. Mas eles também excluíam aqueles sem propriedade, os escravos, os negros livres, em alguns casos as minoria religiosas e, sempre e por toda parte, as mulheres. Em anos recentes, essas limitações a ‘todos os homens’ provocaram muitos comentários, e alguns estudiosos até questionaram se as declarações tinham um verdadeiro significado de emancipação. (...)” P. 16
“(...) a afirmação de autoevidência é crucial para a história dos direitos humanos, e este livro busca explicar como ela veio a ser tão convincente no século XVIII. Felizmente, ela também propicia um ponto focal no que tende a ser uma história muito difusa. Os direitos humanos tornaram-se tão ubíquos na atualidade que parecem requer uma história igualmente vasta. As ideias gregas sobre a pessoa individual, as noções romanas de lei e direito, as doutrinas cristãs da alma... O risco é que a história dos direitos humanos se torne a história da civilização ocidental ou agora, às vezes, até a história do mundo inteiro. (...)”P. 18
“Os direitos humanos requerem três qualidades encadeadas: devem ser naturais (inerentes nos seres humanos), iguais ( o mesmo para todo mundo) e universais (aplicáveis por toda parte). Para que os direitos sefam direitos humanos, todos os humanos em todas as regiões do mundo devem possuí-los igualmente e apenas por causa de seu status como seres humanos. (...)” P. 19
“(...) a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava que ‘Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos’. Não os homens franceses, não os homens brancos, não os católicos, mas ‘os homens ‘, o que tanto naquela época como agora não significa apenas machos, mas pessoas, isto é, membros da raça humana. (...)” P.20
“(...) tudo dependia – como ainda depende – da interpretação dada ao que não era mais ‘aceitável’.” P. 24
“Os direitos humanos são difíceis de determinar porque sua definição, e na verdade a sua própria existência, depende tanto das emoções quanto da razão. A reivindicação de autoevidência se baseia em última análise num apelo emocional: ela é convincente se ressoa dentro de cada indivíduo. (...) temos muita certeza de que um direito humano está em questão quando nos sentimos horrorizados pela sua violação. (...)” P. 24-25
“(...) As ideias filosóficas, as tradições legais e a política revolucionária precisaram ter esse tipo de ponto de referência emocional interior para que os direitos humanos fossem verdadeiramente ‘autoevidentes’.(...)” P. 25
“(...) Todo mundo teria direitos somente se todo mundo pudesse se visto, de um modo essencial, como semelhante. (...)” P. 26
“(...) As crianças, os criados, os sem propriedade e talvez até os escravos poderaima um dia tornar-se autônomos,crescendo, abandonando o serviço, adquirindo uma propriedade ou comprando a sua liberdade. Apenas as mulheres não pareciam ter nenhuma desses opções: eram definidas como inerentemente dependentes de seus pais ou maridos. (...)” P. 27
“A autonomia e empatia são práticas culturais e não apenas ideias, e portanto são incorporadas de forma bastante literal, isto é, têm dimensões tanto físicas como emocionais. A autonomia individual depende de uma percepção crescente da separação e do caráter sagrado dos corpos humanos: o seu corpo é seu, e o meu corpo é meu, e devemos ambos respeitar as fronteiras entre os corpos um do outro. (...)” P. 27
“(...) Com o tempo, as pessoas começaram a dormir sozinhas ou apenas com um cônjuge na cama. Usavam utensílios para comer e começaram a considerar repulsivo um comportamento antes tão aceitável, como jogar comida no chão ou limpar excreções corporais nas roupas. A constante evolução de noções de interioridade e profundidade da psique, desde a alma cristã à consciência protestante e às noções de sensibilidade do século XVIII, preenchia a individualidade com um novo conteúdo. Todos esses processos ocorreram durante um longo período.” P. 28
“(...) A tortura como parte do processo judicial e as formas mais extremas de punição corporal começaram a ser vistas como inaceitáveis. Todas essas mudanças contribuíram para uma percepção da separação e do autocontrole dos corpos individuais, junto com a possibilidade de empatia com outros.
(...) A tortura, isto é, a tortura legalmente autorizada para obter confissões de culpa ou nomes de cúmplices, tornou-se uma questão de grande importância depois que Montesquieu atacou a prática no seu Espírito da leis (1748). (...)” P. 29
“(...) Certos tipos de lesões cerebrais afetam a compreensão narrativa, e doenças como o autismo mostram que a capacidade de empatia – o reconhecimento de que os outros têm mentes como a nossa – tem uma base biológica. Na sua maior parte, entretanto, esses estudos só examinam um lado da equação: o biológico. Mesmo que a maioria dos psiquiatras e até alguns neurocientistas concordem que o próprio cérebro é influenciado por forças sociais e culturais, essa interação tem sido mais difícil de estudar. Na verdade, o próprio eu tem se mostrado muito difícil de examinar. Sabemos que temos a experiência de ter um eu, mas os nerocientista não conseguiram determinar o local dessa experiência , muito menos explicar como ela funciona.” P. 31
“(...) Concordo com outros historiadores que o significado do eu muda ao longo do tempo, e acredito que a experiência – e não apenas a ideia – da individualidade muda de forma decisiva para algumas pessoas no século XVIII.
(...) Os novos tipos de leitura ( e de visão e audição) criaram novas experiências individuais (empatia), que por sua vez tornaram possíveis novos conceitos sociais e políticos (os direitos humanos). (...)” P. 32
“(...) estou insistindo que qualquer relato de mudança histórica deve no fim das contas explicar a alteração das mentes individuais. (...)” P. 33

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado - história oral (fichamento)

THOMPSON, Paul (1935-). A voz do passado - História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 388 p.; 21 cm.
Convenções:
p. - número da página
( ) - referência de citações de outros autores
/ - simples separação antes de outra citação, sem ligação de sentido, na mesma página
[...] supressão de palavras ou frases para reduzir a citação sem perder o sentido
[ ] outros comentários ou definições do anotador das citações
Citações...
p. 11
"instigar os historiadores a se indagarem sobre o que estão fazendo e por quê. A reconstrução que fazem do passado baseia-se na autoridade de quem? E com vistas a quem ela é feita? Em suma, de quem é A voz do passado?"
p. 18
"Um dos aspectos mais polêmicos das fontes orais diz respeito a sua credibilidade. Para alguns historiadores tradicionais os depoimentos orais são tidos como fontes subjetivas por nutrirem-se da memória individual, que às vezes pode ser falível e fantasiosa. No entanto, a subjetividade é um dado real em todas as fontes históricas, sejam elas orais, escritas, ou visuais. O que interessa em história oral é saber por que o entrevistado foi seletivo, ou omisso, pois essa seletividade com certeza tem seu significado. Além disso, este século é marcado pelo avanço sem precedente nas tecnologias da comunicação, o que abalou a hegemonia do documento escrito." (prefácio de Sônia Maria de Freitas)
p. 19
"Nosso passado é nossa memória, disse Borges." (prefácio de Sônia Maria de Freitas)
p. 20
"o ameno turismo contemporâneo que excursiona pelo passado como se fosse mais um país estrangeiro para onde se evadir."
p. 23
"Quanto mais um documento fosse pessoal, local ou não-oficial, menor a probabilidade de que continuasse a existir. A própria estrutura de poder funcionava como um grande gravador, que modelava o passado a sua própria imagem."
p. 28
"O processo de escrever história muda juntamente com o conteúdo."
p. 30 a 31
"Uma coisa é saber que as ruas ou campos em torno de uma casa tinham um passado antes que ali tivesse chegado; bem diferente é ter tido conhecimento, por meio das lembranças do passado, vivas ainda na memória dos mais velhos do lugar, das intimidades amorosas por aqueles campos, dos vizinhos e casas em determinada rua, do trabalho em determinada loja."
p. 40
"fazer com que as pessoas confiassem nas próprias lembranças e interpretações do passado, em sua capacidade de colaborar para escrever a história - e confiar também em suas próprias palavras: em suma, em si mesmos."
p. 41
"Ela trata de vidas individuais - e todas as vidas são interessantes. E baseia-se na fala, e não na habilidade da escrita, muito mais exigente e restritiva."
/
"As palavras podem ser emitidas de maneira idiossincrática, mas, por isso mesmo, são mais expressivas. Elas insuflam vida na história."
p. 42
"A história local traçada a partir de um estrato social mais restrito tende a satisfazer-se com menos, a ser uma reafirmação do mito da comunidade."
p. 43
"A história não deve apenas confortar; deve apresentar um desafio, e uma compreensão que ajude no sentido da mudança."
/
"muito embora os velhos sobreviventes fossem livros ambulantes, eu não podia apenas folheá-los. Eles eram pessoas." (George Ewart Evans)
p. 49
"Ao localizar as coisas no tempo, não o fazia com datas do calendário, mas datava as coisas com acontecimentos físicos... uma inundação." (Alex Haley)
p. 50
"A memória foi rebaixada do status de autoridade pública para o de um recurso auxiliar privado. As pessoas ainda se lembram de rituais, nomes, canções, histórias, habilidades; mas agora é o documento que se mantém como autoridade final e como garantia de transmissão para o futuro."
p. 53
"Deixei de lado toda interação com os livros comuns. Se alguma vez digo coisas que ocorrem em qualquer livro, é em parte para manter o fio da narrativa de um modo menos complicado."(bispo Burnet)
p. 73
"Depois da conversa com homens de gênio e de profunda erudição, a conversa com o povo é certamente a mais instrutiva. [..] O que há para aprender com a classe média?" (Michelet)
p. 75
"não como o conhecido, mas como o conhecível. Para além, ainda há muita escuridão." (F. W. Maitland)
p. 77
"A autobiografia é a forma mais elevada e mais instrutiva em que nos defrontamos com a compreensão da vida." (Wilhelm Dilthey)
p. 88
"nem uma história fictícia, nem um relato de um passado morto; ele [o mito] é uma constatação de uma realidade maior em parte ainda viva." (Malinowski)
p. 102
"O historiador tradicional, em parte por desconfiar das teorias e preferir construir sua interpretação a partir de peças individuais de evidência colhidas onde quer que as possa localizar, é no fundo um eclético."
/
"um texto histórico baseado exclusivamente em fontes não-documentais, digamos a história de uma comunidade africana, pode ser mais superficial, menos satisfatório do que outro, extraído de documentos; mas é história do mesmo jeito." (Arthur Marwick)
p. 115
"o metalúrgico que gostaria que os nomes dos operários fossem gravados sobre aquilo que fazem ('Alguém construiu as pirâmides...') e que, isso não sendo possível, deixam aqui e ali 'um pequeno amassado (...) um erro, meu erro (...) minha assinatura neles, também'." (entrevista a Studs Terkel)
p. 137
"Enquanto os historiadores estudam os atores da história a distância, a caracterização que fazem de suas vidas, opiniões e ações sempre estará sujeita a ser descrições defeituosas, projeções da experiência e da imaginação do próprio historiador: uma forma erudita de ficção. A evidência oral, transformando os "objetos" de estudo em "sujeitos", contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira."
p. 150
"o processo de descarte, que constitui a contrapartida da seleção, continua pelo tempo afora. [...] Porém, o descarte inicial é, de longe, o mais drástico e violento."
p. 153 a 154
"Num mundo em que o meio ambiente está em constante mudança, a lembrança literal é extraordinariamente desimportante. Dá-se com a lembrança o mesmo que com o lance num jogo de destreza. Cada vez que o fazemos ele tem suas características peculiares." (Bartlett)
p. 158
"O verdadeiro objetivo dos sociólogos da história de vida, ou do historiador oral, deve ser revelar as fontes de viés, mais do que pretender que elas possam ser eliminadas."
p. 171
"Quanto mais uma pessoa esteja acostumada a apresentar uma imagem profissional pública, menos provável será que suas recordações pessoais sejam honestas e francas; por isso é que os políticos são testemunhas particularmente difíceis. Assim também os que, por meio da leitura, optaram por uma visão do passado que propagam profissionalmente - os historiadores e os professores. Eles podem ser as fontes mais ricas de sugestões, mas também as mais enganadoras."
p. 174
"Uma das mais profundas lições da história oral é a singularidade, tanto quanto a representatividade, de cada história de vida. Há algumas delas que são tão excepcionais que têm que ser gravadas, qualquer que seja o plano."
p. 179
"A natureza da memória coloca muitas armadilhas para os incautos [...] oferece[m] também recompensas inesperadas para um historiador que esteja preparado para apreciar a complexidade com que a realidade e o mito, o "objetivo" e o "subjetivo", se mesclam inextricavelmente em todas as percepções que o ser humano tem do mundo, individual e coletivamente."
p. 180
"a maioria das pessoas está menos interessada nos anos do calendário do que em si mesmas, e [que] não organizam suas memórias demarcadas por datas."
/
"as memórias são, regra geral, muito falíveis quanto a acontecimentos específicos e muito iluminadoras quanto ao caráter e à atmosfera, coisas em relação às quais os documentos são inadequados." (R. R. James)
p. 182
"Essa condensação na memória de dois eventos distintos em um constitui fenômeno muito comum."
p. 184
"Os boatos não sobrevivem, a menos que façam sentido para as pessoas."
/
"A importância do testemunho oral pode estar, muitas vezes, não em seu apego aos fatos, mas antes em sua divergência com eles, ali onde a imaginação e o simbolismo desejam penetrar." (Alessandro Portelli)
/
"aquilo que as pessoas imaginam que aconteceu, e também o que acreditam que poderia ter acontecido - sua imaginação de um passado alternativo e, pois, de um presente alternativo -, pode ser tão fundamental quanto aquilo que de fato aconteceu."
p. 185
"A construção e a narração da memória do passado, tanto coletiva quanto individual, constitui um processo social ativo que exige ao mesmo tempo engenho e arte, aprendizado com os outros e vigor imaginativo."
p. 187
"Nenhuma expressão humana, seja qual for, fica de fora de um gênero literário." (Vansina)
p. 188 a 189
"as vidas dos profetas africanos, por exemplo, podem transformar-se em mitos no prazo de três anos."
p. 190
"Acima de tudo, consciente ou inconscientemente, o mais provável é que memórias que são desabonadoras, ou positivamente perigosas, sejam tranqüilamente enterradas."
/
"É, sempre queremos que isso seja contado, mas, dentro de nós, estamos tentando esquecer; bem dentro, no mais profundo da mente, do coração. É instintivo: tentar esquecer, mesmo quando estamos fazendo os outros se lembrarem. É uma contradição, mas assim é que é." (Quinto Osano)
p. 191
"para uma comunidade ameaçada, a memória deve, antes de mais nada, servir para acentuar um sentimento de identidade comum, de modo que episódios de divisão e de conflito caem no esquecimento."
/
"A descoberta de distorção ou de supressão numa história de vida, uma vez mais é preciso ressaltar, não é puramente negativa. Até mesmo uma mentira é uma forma de comunicação."
p. 198
"para os historiadores, eles [bruxos e oráculos] representam o duplo desafio, profissional e pessoal, de profissões alternativas que manipulam o passado segundo regras diferentes."
p. 202
"a necessidade de maior sensibilidade histórica ao poder da emoção, do desejo, rejeição e imitação inconscientes, como parte integrante da estrutura da vida social comum e de sua transmissão de uma geração para outra."
/
"não são as técnicas específicas da psicanálise na interpretação de sonhos o que mais importa, mas sim ter ela chamado a atenção para o fato de quão impregnado de simbolismo está nosso mundo consciente."
p. 204
"A própria crença original de Freud na memória total agora parece mais um desejo fantasioso do século XIX de recapturar o passado e não tem, certamente, base científica alguma, muito embora tenha tido tanta influência que a maioria das pessoas parece 'acreditar que todas as lembranças são potencialmente recuperáveis'."
p. 204 a 205
"A lição importante é aprender a estar atento àquilo que não está sendo dito, e a considerar o que significam os silêncios. Os significados mais simples são provavelmente os mais convincentes."
p. 205
"A maioria das pessoas conserva algumas lembranças que, quando recuperadas, liberam sentimentos poderosos."
p. 208
"Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade."
p. 209
"O fato de cada vez mais se darem conta, não só de que as pessoas eram úteis à história, mas que também a história podia ser útil para as pessoas, foi uma das origens principais do movimento de terapia da reminiscência que se tem difundido tão surpreendentemente nos últimos anos."
p. 211
"A questão fundamental, porém, foi uma tomada de consciência cada vez maior da "enorme arrogância", como a denominou Malcolm Johnson, de profissionais - de classe e geração diferentes, e de experiência de vida diferente - ao supor que podiam definir as necessidades de seus clientes sem primeiro compreender o diagnóstico que eles mesmos faziam da própria condição."
p. 212
"fora autorizado a desenvolver experimentos no uso de imagens para estimular idosos retraídos a falar e a responder. As primeiras imagens que usou eram artísticas, mas, depois, descobriu que figuras antigas de cenas e eventos [...] eram ainda mais eficientes."
p. 213
"o Recall desencadeia um tema de conversa; e uma vez reiniciada a comunicação, as pessoas se redescobrem como seres humanos."
/
"[que] a reminiscência deixe de ser um evento especial e simplesmente se torne parte da textura geral da vida". (John Adams)
[Não foram lidos os capítulos de 6 a 9, que se dedicam mais à prática da história oral do que a reflexões sobre memória]

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Terra e Poder em Mato Grosso - política e mecanismos de burla (1892-1992) - FICHAMENTO

MORENO, Gislaine. Terra e Poder em Mato Grosso: política e mecanismos de burla (1892-1992). Cuiabá, MT: Entrelinhas/EdUFMT, 2007
Fichamento:
Prefácio
“(...) a questão fundiária no estado beneficiou prioritariamente os setores hegemônicas da economia e da política, sendo o acesso à terra por parte de trabalhadores ruarais conseguido somente através dos movimentos sociais (..) o Estado(...) mediador dos conflitos e da regulação das relações de produção.” P. 14
“(...) buscando as raízes do processo de privatização das terras em Mato Grosso, a autora sustenta que a articulação entre o poder político e o poder econômicos, com base nos mecanismos institucionais e jurídicos, possibilitou a transformação das terras devolutas em propriedade privada, acentuando o processo de concentração fundiária, condição para o avanço da fronteira econômica a partir dos anos 70 e para a territorialização do capital.” P.15
“(...) Mensagens Governamenis, que são enviadas à Assembléia Legislativa no final da cada ano de Governo, contantes do acervo no Arquivo Público de Mato Grosso. (...)” P. 24
“ (...) – Intermat (1976 a 1992), efetuamos exame documental de algumas centenas de processos individuais, sob a guarda deste órgão, referentes à regularização fundiária de várioas regiões do Estado. (...)
(...)formas legais de distribuição de terra no território mato-grossense:
- alienação de terras devolutas e pública, através da venda direta por meio do processo de licitação ou através de concessões do governo;
- regularização fundiária, com ou sem a exigência de concorrência e concedendo ou não o direito de preferência;
- colonização oficial e particular, segundo uma política maior, empreendida pelo Governo Federal, para a ocupação dos ‘espaços vazios’ e sua integração à economia nacional, principalmente na sua fase recente de acumulação capitalista. (...)” P. 25-26
“Entre 1947 e 1964, os governos estaduais implementaram a colonizzção particular. (...)” P. 26
“(...) A colonização particular foi incentivada por programas especiais do governo federal, sendo a via capitalista de acesso à terra pelos trabalhadores rurais, expropriados de outras regiões do país. (...) resultado concreto da inserção de Mato grosso na política federal de valorização da Amazônia.” P. 27
“(...) especulação no processo de acesso à terra em Mato grosso.” P. 29
Cap. 1
Terra e poder em Mato Grosso: contextualizando cenários e personagens
“A história da terra em Mato grosso reflete um processo de mais de dois séculos e meio , caracterizado pela conquista, ocupação e disputa do território. (...)” P. 33
1.1 A Conquista do sertão e a formação territorial de Mato Groso: período colonial

“(...) Além de garantir o povoamento e a defesa militar daquela região, as terras situadas entre Cuiabá e a nova capital deveriam ser ocupadas, caractirazndo o domínio lusitano sobre elas. (...)” p. 34-35
“A decadência da mineração ocorrida no final do século XVIII forçou um novo reordenamento das forças produtivas, e aqueles que detinham os meios de produção – latifundiários, mineiros e comerciantes – procuraram equilibrar-se diversificando sua produção através da intercomplementaridade da economia. Nessse sentido, era comum que mineiros, comerciantes e mesmo lavradores solicitassem a concessão de sesmarias para alargamento de suas atividades. (...)” P. 35
1.2 A inserção de Mato Grosso na economia internacional e o papel das elites regionais (sulistas e nortistas)
“Vila Bela da Santíssima Trindade (...)guardiã da fronteira, conseguiu manter povoada a estrema raia oeste graças aos estímulos comerciais e fiscais advindos da política pombalina, através da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, responsável pelo abastecimento da região guaporeana. (...)”
O mandonismo nesta região, portanto, era exercido pela eleite política, que secularmente enfeixava o comando administrativo e econômico da capitania/província, constituiída pelas classes agrária e comercial, que aspiravam o poder político e a chefia do governo estadual, amparados pelo aparato militar e pela força das milícias. (...)” P. 36
“ (...) os antigos engenhos, tocados manualmente, se transformaram em usinas açucareiras equipadas com maquinaria importada da Europa e cuja produção não se restringiu apenas ao açúcar, mas também a seus derivados (...).
Apesar de a produção açucareira não ter merecido relevância dentre as exportações, não deixou de abastecer fartamente o mercado regional e de representar o patrimônio latifundiário em mão de uma elite que disputou entre si o comando político do Estado. (...)” P. 37
“ A extração do látex regional foi responsável pelo incremento do comérico exportador, transacio nado por firmas comerciais de propriedade de mato-grossenses, tais como “Almeida & Companhia”, “ Alexandre Addor”, “Firmo & Ponce, “Fernando Leite & Filhos”, “Ponce, Azevedo & Cia”, “Lucas Borges & Cia, dentre outras. (...)
Outra atividade produtiva florescente no final do século XIX e início do XX e que foi, tal como a borracha , responsável pela valorização das terras do centro/norte matogrossense foi a extração da poaia, também conhecida com ipeca ou ipecacuaha. (...)
A pecuária na região mato-grosssense teve início no século XVIII, quando entraram as primeiras cabeças de gado para abastecer as minas de Cuiabá. (...) Os estabelecimentos pecuários de maior monta nesta região foram o da Fazenda Jacobina, (...) e o Saladeiro de Descalvados, ambos situados no rio Paraguai. (...)” P. 38
“As incursões responsáveis pelo desalojamento dos índios de grande parte do território sul-matogrossense se deveu ao movimento dos ‘entrantes’ que, vindos da região norte de São Paulo, especialmente de Franca (...) e Triângulo Mineiro, penetraram em terras mato-grossenses abrindo caminhos e se apropriando de grande quantidade de terras através do estabelecimento de fazendas, cuja vocação maior era a criação de gado (...). Esse movimento teve como base aquisitiva não as sesmarias, extintas em 1822, mas as ‘posses’ de grandes tamanhos, que antecederam a lei de Terras de 1850.” P. 39
“Apesar da grande movimentação povoadora e devastadora empreendida pelos ‘entrantes’ a atividade criatória não foi suficiente para gerar riquezas e tampouco para fazer emergir, naquele momento histórico, grupos ou lideranças políticas de expressão. No entanto, o desenvolvimento da pecuária foi responsável, no século XX, pela constituição da elite política da região sul do estado.” P. 40
“O poder e autonomia desta Companhia colocaram em xeque o poder do Estado chegando-se a dizer na época que a Matte Laranjeira constituía-se num ‘estado dentro de outro estado’. (...”
Não somente a erva-mate se beneficiou da abertura da navegação pelo rio Paraguai, mas também a pecuária diante da possibilidade de exportação de subprodutos bovinos. Mas foi a com chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil no sul de Mato Grosso, que a pecuária se expandiu. (...)” P. 42
“Com o desenvolvimento econômico da região sul, possibilitado pela abertura da navegação, após a Guerra do Paraguai (1870), e com a construção da ferrovia (1914) rompeu-se o antigo processo de ocupação e novas bases econômicas e sociais foram implantadas para a recuperação da província/estado. Apesar de o poder político continuar centralizado em Cuiabá, novos grupos de pressão surgiram na região sul se opondo tenazmente às lideranças nortistas.” P. 42-43
1.3 Primeira República em Mato Grosso: o poder dos coronéis
“O banditismo foi outro componente característico do primeiro período republicano em Mato Grosso. (..)
O fenômeno do coronelismo tem o seu fundamento na concentração da propriedade enquanto base econômica de sustentação das manifestações do proder privado. (...) devido à natureza das elites dominantes no Estado, desde um usineiro ou um comerciante bem-sucedido: (...)” P. 44
“Essa ferrovia, cujo trajeto inicial objetivava atingir Cuiabá, não obedeceu ao projeto original, colocando a região norte do estado em situação de desvantagem uma vez que a rota hidroviária ficou em segundo plano, e a ferrovia não chegou até a cidade portuária de Corumbá. (...)
A peculiaridade da região favoreceu também o surto d grileiros, que se apossaram de áreas imensas, expulsando os descendentes de antigos posseiros, provocando às vezes a resistência pelas armas, como ocorreu na Fazenda Taquaruçu, em que se tornou necessária a intervenção de força militar para encerrar o conflito.” P. 46
“No início da república a região sul foi também palco de lutas pela posse da terra envolvendo questões políticas. Ainda no governo de Manoel Murtinho (1895) teve início no municíio de Nioaque uma série de acontecimentos que vão eclodir em 1897, tendo como conseqüência o confronto entre coronéis e posseiros locais e a cisão do Partido Republicano local.” P. 48
“A ‘questão do mate’ revela outra face do conflito, envolvendo terra e poder na medida em que manifesta a contradição existente entre os interesses públicos e os interesses privados, tendo como atores o político e o proprietáo, configurados num único personagem. (...)
Após a proclamação da República doi grupos oligárquicos dominavam a vida política e econômica da Mato grosso, alternado-se no poder a oligarquia do norte composta por usineiros, extrativistas e pecuaristas, e a oligarquia do sul, composta por grandes pecuaristas e comerciantes, destacando-se os coronéis da Companhia Matte Laranjeira. (...)” P. 49
1.4 Terra e poder nas mãos das oligarquias
“ O modelo de dominação baseado no sistema coronelista/oligárquico predominou em Mato Grosso até a primeira metade do século XX. Devido à sua natureza urbano-rural, as elites dominantes estabeleceram relaões com o poder de Estado, salvaguardando seus interesses políticos-econômicos através de um sistema eleitoral baseado na troca de favores, onde a terra teve forte poder de barganha.(...) P. 55
“(...) A disputa pela hegemonia do poder regional se revelou mais tarde, na idioloiga separatista, que se firmou no ordenamento deferenciado das focas produtiva do sul em relação ao norte.
Os confrontes entre as eleites foram inevitáveis, e a violência física e econômica foi a tônica que marcou a prática personalista da política local.(...)
As alterações mais relevantes ocorridas no interior das elites, no pós-wo, relacionaram-se ao caráter urbano-burocrático das oligarquias, propiciado pelo aprofundamento do processo de centralização político-aministrtiva no Estado Novo. Uma extensa e intricad rede burocrática foi montada para dar sustentação e controlar os processos de mudanças sociais e econômicas assumidos pelo Estado. A exigência desse aparato burocrático contribuiu para o surgimento da política de clientela em substituição à política dos coronéis. (...)
A dominação passou a se dar sobretudo pelo controle dos cargos políticos e administrativos e pelo controle dos votos. Ou seja, a força dos leões, a violência, foi substituída pela ‘política das raposas’, a astúcia, ambas, porém, de conteúdo oligárquico:” P. 56
“Essa prática estendeu-se ao controle na distribuição das terras devolutas estaduais. Cada governo que assumia, suspendia as concessões, as vendas e a tramitação normal dos processos de regularização, para fazer um balanço das terras alienadas e submeter o órgão de terras a uma devassa. Depois procedia à rápida regularização ou engavetamento dos processos pertencentes aos adversários políticos. Além disso, as irregularidades encontradas serviam de plataforma política nas disputas eleitorais subseqüentes.
(...) A alteração mais radical verificou-se em 1965, com a eleição de Pedro Pedrossian para o governo estadual.” P. 58
“As ações de modernização empreendidas pelo governo alcançaram também o Departamento de Terras e Colonização –DTC, que teve as suas portas cerrada. Na avaliação do governador, a falta de controle no processo de regularização das terras devolutas e públicas e os objetivos políco-eleitoreiros na distribuição de títulos,pelos governos que o antecederam, resultaram em problemas fundiários de difícil solução.
Todas as medidas de mudanças sociais e econômicas do governo, pressupunham o esvaziamento dos tradicionais esquemas políticos e a queda da capacidade de pressão da velha ordem. Tudo isso levou à articulação do ‘impeachment’ contra o governador, tanto pelo PSD, quanto pela UDN, que viam seus projetos políticos serem fortemente ameaçados: (...)” P. 59
“(...) Este compromisso político-familiar que uniu e ainda une os donos do poder no Estado, pôde sustentar, controlar e movimentar todo o processo de acesso à terra, segundo interesses específicos particulares e ou político-partidários, dede 1891, com a aprovação da primeira Constituição Mato-grossense e com a eleição do primeiro presidente do Estado Manoel José Murtinho, em 1892. (...)” P. 60
Cap. 2
A história legal da terra em Mato grosso e a questão política
“A história legal da terra em Mato Grosso mostra como se deu a passagem das terras do domínio público para o domínio privado, como as leis, que regulam o processo de aquisição de terras, serviram de mecanismos políticos para dar sustentação a uma política fundiária voltada à constituição da moderna propriedade territorial, de acordo com os interesses das classes que dominaram e comandaram o poder econômico e político no Estado,principalmente dos proprietários de terra, por muito tempo.” P. 63
“(...) a promulgação da primeira Constituição Republicana em 1891. Com a implantação do sistema federativo, os estados-membro passaram a ter o domínio das terras devolutas ‘situadas em seus respectivos territórios’. (...)
(...) o sistema federativo corroborou o nascimento e o fortalecimentos dos poderes locais. (...)” ). 64
2.1 A primeira lei de terras no Estado e outros regulamentos (1892-1930)
“(...) essas áreas pertenciam, na sua maioria, a grandes fazendas de criação, usinas de açúcar e indústrias extrativas. Um grande número desses possuidores de sesmarias e posses vinha protelando a sua regularização, intentada desde o império, pelas possibilidades de incorporações sucessivas de novas terras também para fugir das obrigações burocrática. (...)
A Lei nº 20 também deu garantias à regularização de posses ocorrida antes e após a data limite para a sua efetivação (1854). (...) P. 66
“Mas, ao invés de beneficiar os pequenos posseiros, garantindo-lhes a propriedade territorial com a democratização do solo, a lei produziu, ao contrário, enormes latifúndios, adjudicando a títulos gratuitos vastas extensões de terras a particulares. (...)
(...) ao limitar em 900 hectares a área para a agricultura e 3600 hectares para a pecuária, liberar, até 1889, a regularização das posses havidas anterior a 1854 e ainda deixar livre o tamanho das áreas para compra e arrendamento, o Governador Manoel José Murtinho, deliberadamente ou não, estava beneficiando a concentração da grande propriedade. (..)” P. 67
“(...) A área média correspondia a 15.180,501 hectares de terras, a cada título legalizado. (...)” P. 69
“Enquanto as vendas, concessões e legitimações incidiam sobre áreas gigantescas, as concessões gratuitas eram restringidas a lotes tendo em média 50 há. (...)
Pedro Celestino Correa da Costa, parece ter sido exceção. Em 1909 chamava a atenção da Assembleia Legislativa para os atos abusivos que vinham ocorrendo nas medições e demarcações de terras com o envolvimento de agrimensores e a venda indiscriminada de terras, sem prévio planejamento: (...)” P. 70
“O governador Pedro Celestino, por sua vez, via como medidas restritivas à aquisição de grandes áreas, o aumento dos preços das terras pública, sobretudo as localizadas na região sul e que se achavam valorizadas:(...)
Embora mostrasses preocupação com o destino que vinha se dando às terras devolutas, exortando a Assembleia Legislativa a ter mais cautela na aprovação de leis que permitiam a prática de atos abusivos e ilícitos na regularização de extensa áreas do território, com o envolvimento dos agentes responsáveis pelas medições e demarcações das terras, o Governador Pedro Celestino não ficou imune aos apelos dos negociantes da terra. (...)” P. 72
“(...) a política de alienação indiscriminada de terras continuou marcante em todos os governos estaduais da primeira república. Os números aqui apontados são indicadores da tendência concentradora da propriedade territorial, ainda que não se tenha obtido uma sequência ininterrupta de informações. (...) A área de algumas propriedades regularizadas, originárias desses domínios, chagava a alcançar 15.000 há, enquanto a área média ficava em torno de oito mil hectares, quando a legislação estadual havia estipulado área máxima de 3600 há para as legitimações de posses.
(...) a expansão da pequena propriedade, enquanto política fundiária, só fez parte dos discursos governamentais para justificar a consignação de verbas nos orçamentos para a construção de estradas e outras obras de infra-estrutura, ‘tão necessária ao recebimento de imigrantes e à implantação de colônias agrícolas’. (...)
(...)seria mais prudente fechar os olhos diante da prática dos proprietários em burlar a lei, com a pluralidade das posses contíguas, e efetuar a legitimação das posses e dos excessos incorporados. (...)” P. 73
2.1.1 1927: um novo regulamento de terras
“O regulamento nº 38 de 1893 teve vigência até 1902, quando foi substituído pelo Decreto nº 130, de 14 de junho, que dispôs mais sobre a venda e medição das terras públicas. Em 1927, um novo regulamento de terras veio substituir est último, vigorando até 1949. (...) Objetivamente, as diretrizes gerais vinham fortalecer o processo de concentração.” P. 74
“(...) A lei cogitava da venda de ‘lotes maiores ou menores’. (...)
Devido a essa brecha deixada na lei, muitos requerimentos faziam referência a áreas bem menores, cujos limites reais excediam em dez ou mais vezes a área requerida, trazendo enormes prejuízos ao Estados, duplamente burlado: na extensão das áreas e no pagamento dos preços estipulados, conforme tamanhos declarados. (...)” P.75”(...) A tentativa de se facilitar a apropriação das terras devolutas por pequenos produtores continuava a ser mantida apenas na lei. (...)
(...) o arrendamento de grandes extensões de terras pertencetes ao Estado foi plenamente possível de realização. (...)” P. 76
“Em síntese, de 1892 a 1930, as terras públicas de Mato grosso passaram para o domínio particular, através dos seguintes processos:
1) Regularização das concessões de sesmarias e legitimação das posses, normalmente, de grandes extensões;
2) Concessões gratuitas a imigrantes nacionais e estrangeiros e concessões especiais a colonizadores e empresas particulares;
3) Arrendamento e aforamento para a indústria extrativa de vegetais;
4) Contrato de compra e venda de terras devolutas. (...)” ). 77
2.1.2 As Concessões gratuitas
“ Havia portanto uma incoerência nos discursos políticos, que pregavam a necessidade imperiosa de ‘braços laboriosos e inteligentes’, com as ações efetivadas. O inexpressivo número de concessões gratuitas efetivadas mostra a falta de interesse na expansão da pequena lavoura, ainda que a propaganda oficial, publicada em diversas línguas para atrair imigrantes europeus, propalasse o contrário: (...)
(...) Até 1905, o governo informava que cerca de 5000 nacionais e estrangeiros, procedentes sobretudo dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais, tinham entrado e se fixado em Mato Grosso (...) Pelo número de lotes concedidos e o número de imigrantes calculado, pode-se inferir que apenas 48 pessoas estavam sendo beneficiadas, considerando-se o número estabelecido, por família, em cada lote. É provável que a maioria tenha se tornado posseiro, já que a propaganda oficial prometia terras de graça” P. 80
”(...) conclui-se que a política de colonização serviu mais para controlar a entrada de colonos imigrantes e a expansão da pequena propriedade. (...) o número de imigrantes que veio para o estado e o número de trabalhadores livres aqui existentes não representavam forças suficientes para concorrer com os especuladores e provocar um processo contrário à concentração fundiária, permitindo assim a expansão das pequenas propriedades no estado.” P. 86
2.1.3 Os arrendamentos fundiários e a “questão do mate”
“(...) Sob a proteção do Governador, Gal. Antônio Maria Coelho, Tomás Laranjeira, que veio do Paraguai para Mato Grosso no começo da República, conseguiu afastar outros concorrentes e monopolizar toda a áreas de ervais, calculada em 1600 léguas quadradas, por uma concessão inicial de 16 anos. As ligações de Tomás Laranjeira com o mercado argentino e as facilidades de comunicação através do Prata possibilitaram o comércio exterior e a expansão do produto. (...)
No governo de Manoel José Murtinho a intervenção da Mate-Laranjeira tornou-se mais visível com o seu fortalecimento político e econômico, pela vinculação direta do governador ao grupo econômico que controlava a empresa, ‘resultando num incrível estado dentro do próprio estado’ (...)” P. 88
2.1.4 Os serviços de medição e demarcação das terras pública e particulares
“Tanto o regulamento federal de 1854 como o estadaul de 1893 exigiam para legitimação de qualquer posse o registro das terras como prova. Ocorre que muitos possuidores apresentavam, como prova de suas posses anteriores a 1850, atestados de três particulares que, invariavelmente, não podiam ser comprovados, pois muitos não mais viviam, mas eram aceitos pelos Juízes Comissários e endossados pelo Presidente do Estado. Assim, burlava-se a lei no excesso e nas datas limites para legitimação de posses.” P. 96
“(...) o problema não estava na lei, embora toda a legislação de terras fosse muito liberal. O fato é que havia um favorecimento declarado à regularização de grandes áreas, fosse resultante de pressões dos proprietários ou da própria política fundiária, que expressava interesses diversos na questão da terra. (...)” P. 98
“A facilidade em praticar atos de burla à legislação pelos agrimensores podia resultar em parte da própria desorganização do setor fundiário, situação que vinha de longa data. (...) P. 99
“O processo de concentração fundiária foi, portanto, sendo facultado tanto por uma legislação permissiva quanto pelas fraudes praticas pelo proprietários, com a conivência ou não de funcionários do órgão de terras e também de representantes do poder público, que faziam vistas grossas perante os abusos cometido . Os excessos de área, um dos mais graves mecanismos de burla, foram sistematicamente legitimados, tendo como punição apenas o pagamento atualizado das terras. Entre a expedição do título provisório e o título definitivo, as áreas aumentavam consideravelmente de tamanhos com a aquiescência dos governantes, que denunciavam o problema à Assembleia Legislativa, mas nada de concreto faziam para reverter o processo.” P. 100
2.2 O primeiro código de terras e as questões fundiárias (1930-1966)
“(...) O desenvolvimento econômico, conforme objetivo nacionalista do governo, deveria ser tarefa comum a todos os segmentos da sociedade: pequenos e grandes produtores rurais, industriais, operários e governo. Iniciou-se, assim, a ‘Marcha para o Oestes’, projeto assentado numa política de distribuição de terras a trabalhadores nacionais sem terra e estrangeiros com experiência agrícola. Cabia a eles promover a conquista do interior do país, dentro da estratégia geopolítica de ocupação dos ‘espaços vazios’.” P. 101
“(...) o governo federal tratou de desalojar a ‘Companhia Mate Laranjeira’, arrendatária de 1 milhão de hectares de terras naquela região. (...) As terras arrendadas foram liberadas para a colonização, e o território foi extinto, consumando-se a estratégia do governo federal. No luar foi implantada, em 1943, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAN) dentro do programa oficial de colonização, que visava impulsionar a fronteira agrícola para o oeste do país.” P. 102
“(...)1946, foi criado o Departamento de Terras e Colonização (DTC) em substituição à Diretoria de terra e Obras Pública. (...)” P.103
“No sul do Estado, as terras de um milhão de hectares antes ocupadas pela exploração ervateira foram liberadas ao povoamento espontâneo e à colonização da iniciativa particular e oficial. (...)” P. 105
2.2.1 O primeiro código de terras do Estado e suas modificações
(...)
2.2.1.1 Terras particulares e terras públicas
“Ultimada a medição e demarcação, os autos eram submetidos à apreciação da diretoria técnica e da Procuradoria Fiscal do Estado. Os processos referentes à compra de terras sob a jurisdição da Delegacia Especial em Campo Grande eram verificados pelo Procurador dos Feitos da Fazenda Estadual, naquele município.” P. 108
2.2.1.2 Da concessão gratuita
“O Código de Terras manteve as concessões de lotes de terras devolutas a títul gratuito, mas restringiu-as aos núcleos coloniais. (...) a lei deixou abertura para a concessão de áreas maiores ‘de acordo com a qualidade das terras e o fim a que se destinam’.” P. 109
2.2.1.3 Do arrendamento
(...)
2.2.1.4 Da medição e demarcação das terras públicas: o rito processual
“O profissional da medição de terras públicas e particulares sempre ocupou papel de destaque no ritual de regularização, pois dele dependiam todas as informações necessárias ao julgamento do processo. Este profissional acabou adquirindo forças que lhe permitiam manipular e burlar a legislação de acordo com os seus interesse e dos proprietários de terras.
O código de terras procuro dificultar em parte essa ação. (...)” P. 110
2.3 A aplicação do código de terras ou a política de venda de terras devolutas (1950-1966)
“(...) Essa modernização significativa (...) uma maior liberalidade da legislação no processo de venda de teras devolutas, através de concessões a empresas particulares: (...)
O discurso do governador nas mensagens governamentais à Assembleia Legislativa (...) ‘ O território matogrossense constitui, de fato, um convite para uma deslocação de fronteira, à espera de novos bandeirantes dotados de iniciativa, aparelhados de capitais e métodos modernos’. (...)” AP. 113
“Os dados demonstram a violenta especulação com a terra no governo Fernando Corrêa da Costa, sobretudo no ano pré-eleitoral, embora não tivesse poupado críticas ao seu antecessor e justificasses seus atos como necessários ao atendimento do ‘inusitado fluxo de pessoas e capitais’ que afluíam para Mato Grosso. Ou seja, isto significava ‘um incentivo à produção, que tem na exploração da terra a sua base máxima’, para a vitalização da economia do Estado, que na época contava com pouco mais de 4000000habitantes.” P. 115
“Com raras exceções, apontava o governador, foram cumpridas as cláusulas contratuais mínimas de medição e demarcação da área concedida, abertura de estradas etc. por outro lado, as colonizadoras vendiam os lotes por altos preços, lesando os colonos e o Estado, que caíra no descrédito, juntamente com as empresas (...)
A crise em torno das questões de terá eclodiu em 1955, com a denúncia da imprensa de boicote do governador Fernando Corrêa à aprovação do projeto de criação do Parque Indígena do Xingu. O projeto de lei, apresentado à Câmara dos Deputado em 1953, pretendia reservar uma área estimada em mais de 2000.000 Km quadrados com terras de boa qualidade e situada em área destinas ‘às conquistas da civilização’, o governador retirou o seu apoio.(...)” P. 118
“(...) discurso oficiais, tendo como justificativa a necessidade de ocupação dos espaços vazios do território mato-grossense. (...)” P. 119
“(...) 1956 e 1957 (...) 1958 (...) 1959 (...)
Nos anos acima referidos, os órgão de terra de Cuiabá e Campo Grande receberam um total de 5.899 pedidos de compra de terras devolutas, sendo expedidas 2.265 concessões. Os títulos provisórios e definitivos somaram 5.577, totalizando 21.970.259, 17 hectares uma média de 3.939,44 há cada propriedade. (...)” P. 124
“Embora a natureza do discurso do governador Ponce nas mensagens governamentais fosse de denúncias à administração anterior e adotasses, ao mesmo tempo, uma postura mais reservada às possibilidades de manipulação no comércio de terras, tudo indica que o seu governo não ficou imune à especulação fundiária ligada aos interesses partidários.” P. 126
“(...) a transformação das terras devolutas em reservas para colonização tinha como tática proteger a grande propriedade privada, livrando-a de possíveis invasões e de ser atingida pelo dispositivo contitucional.
(...) A política de terras, para afastar o perigo iminente de uma possível batalha no campo mato-grossense, podia ser resumida nas seguintes intenções do governo:
a) Fazer uma ‘reforma agrária’, co a utilização das terras públicas improdutivas;
b) Preencher os claros populacionais do interior do país, incentivando a migração, inclusive com doações gratuitas de terras;
c) Respeitar a propriedade privada, especialmente a propriedade produtiva. (...)” P. 127
“Durante os dois primeiros anos, 1961 e 1962, o governo limitou-se à ultimação dos processos de venda em tramitação nos órgãos de terra de Cuiabá e Campo Grande. Reaberto para o recebimento de novos pedidos de compra, quase cinco mil requerimentos deram entrada naqueles órgãos. Nos dois anos seguintes, 1963 e 1964, foram efetuadas 1.377 concessões e 105 permutas de terra. Estas permutas foram realizadas para resolver problemas de conflitos pela posse da terra e assentamento de migrantes. (...)” P.128
2.4 Os serviços estaduais de terá e colonização
2.4.1 o DTC e a CPP
“(...)1966 (...) O volume de irregularidades e de corrupção atingia níveis extraordinários, tornando a situação insustentável. (...)” P. 135
2.4.2 O fechamento do Departamento de Terras e Colonização- DTC
“O fechamento do DTC marcou a história legal da terra em Mato grosso, como sendo um ato isolado, meramente administrativo. Mas, combinado com a política de regularização fundiária implementada pelo Governo federal, ganhou outro sentido. É nesse período que se consolidou a estrutura fundiária concentrada do território que vinha sendo gestada desde a vigência da primeira lei de terras , em 1892.
2.4.3 As ações fundiárias da Codemat e do Intermat
Em 1972, o governo do Estado criou a Comissão Especial de Terras, subordinada à Secretaria de Agricultura, com a finalidade de levantar e classificar todos os documentos do DTC e da Delegacia Especial de terras e Colonização de Campo Grande, para a atualização cadastral do território estadual, sendo esta medida acordada com o Incra. (...)” P. 138
“(...) em 1976, com a criação do Intermat (...). era um momento de grande movimentação em torno da terra, em que se opunham posseiros, grileiros, especuladores, investidores, antigos proprietários e índios – personagens distintos e com diferentes interesses. (...)” P.139
2.4.3.1 A Codemat
“Em 1991, o jornal Folha de Sçao Paulo (p. 13) trouxe à tona a situação irregular de uma possível desapropriação de 403.000 hectares de terras pertencentes à Cotriguaçu. (...) Caso a desapropriação fosse efetivada, a Cotriguaçu seria beneficiada com a indenização pelo governo federal, em situação de inadimplência com o governo do Estado, que havia prorrogado o prazo até 1993, para que cumprisse as obrigações contratuais de colonização. Ou seja, a desapropriação, supostamente, havia sido articulada para beneficiar a empresa que receberia a renda dessas terás, que, segundo a Folha, haviam sido ‘doadas’ pelo Estado à empresa. (...)” P. 143
“ A compra em grupo evidencia atos de fraude ao limite constitucional e a tendência especulativa no processo de compra e venda. As terras destinadas especificamente à colonização provavelmente seriam utilizadas para a extração da madeira ou garimpo de minérios, uma vez que os solos dessas região apresentam restrições à agricultura.
(...)
A atuação da Codemat na região de Aripuanã abriu possibilidades tanto para a expansão de enormes patrimônios individuais, ligados a interesses especulativos, como também à expansão da pequena propriedade pro meio da colonização oficial e particular como Juína, Alta Floresta, Juruena, Cotriguaçu e Colniza, hoje municípios emancipados. Nesse processo, também houve abusos na apropriação das terras devolutas, como o favorecimento a grupos especuladores, com a possível participação de funcionários na distribuição das terras, que não ficavam imunes às pressões e influências desses grupos e seus aliados.” P. 147
2.4.3.2 O Intermat
“ Com esta radiografia da situação encontrada, a política fundiária do órgão, no início de seu funcionamento, restringiu-se às atividades de discriminação administrativa, de arrecadação de terras devolutas e de alienação de terras públicas. A destinação dessas terras esteve voltada basicamente à regularização fundiária e AA colonização oficial e particular, conforme dispunha o Código de Terras. Cabe salientar, porém, que os interesses pessoais e políticos de diversos governantes e dirigentes dos serviços de terra, aliados a grupos políticos e econômicos, parecem ter se tornado, ao longo dos tempos, uma prática costumeira de influência e mandonismo nas decisões relativas às questões de terra no Estado, respaldadas, muitas vezes, em uma infinidade de normas fundadas no casuísmo e interesses diversos.” P. 151
O serviço federal de terras e colonização no Estado – O Incra
3.1 A política federal e regularização fundiária
“ A política de regularização fundiária, seguindo os fundamentos do Estatuto da Terra, foi utilizada durante os governos militares como o principal instrumento de ‘reforma agrária’ no país. (..)” P. 159
“(...) Para eliminar os focos de tensão social e dar sutentação a essa política, o governo desenvolveu, de um lado, projetos oficiais de colonização nas áreas de desbravamento e, de outro, projetos de colonização empresarial, garantindo o acesso à terra ao empresariado pelo processo de regularização fundiária.
(...)
3.2 Colonização e regularização fundiária
Fazia parte também da política de regularização fundiária os chamados projetos de ‘Colonização Empresarial’. Esses projetos consistiam simplesmente na legalização de terras, que podiam variar de 101 ao limite máximo constitucional de 3.000 hectares, beneficiando pessoas com maior poder aquisitivo.” P. 163
“(...) Foi assim que diversos empresários do centro-sul do país tornaram-se também grandes proprietários de terra em Mato Grosso. Inicialmente ‘ocupavam as terras ao longo das rodovias federais ou nas áreas consideradas indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacional, depois adquiriam-nas a preços simbólicos, justificado pela ocupação pioneira e desbravamento das áreas de cerrados ou floresta para a implantação de empresa capitalista. Para burlar a constituição no tamanho das áreas, recorriam a um ‘procurador’ que obtinha procurações de diversas pessoas, para requererem em nome de terceiros os títulos de propriedade das terras devolutas ‘já ocupadas’. Dos órgãos oficiais conseguiam declarações sobre a inexistência de índios ou de posseiros nas terras pleiteadas. Ao Incra competia apenas sacramentar a ocupação, ou melhor, legalizar a grilagem titulando as terras onde normalmente eram desenvolvidos projetos agropecuários incentivados pelo governo (...).” P. 164
“A presença maciça de projetos particulares em Mato Grosso pode ser entendida em primeiro lugar, pela sua tranformação em área de fronteira agrícola e sua incorporação ao processo produtivo nacional, em virtude da redefinição da divisão social do trabalho, dentro da política de desenvolvimento traçada para o país pelos governos militares; e, em segundo que a origem desse processo está ligada à histórica estrutura fundiária do país.(...)
(...) dentro da lógica do processo de construção capitalista do território, a colonização, agrícola e empresarial, foi o grande agente da transformação regional mato-grossense.” P. 179
“(...) A terra, como uma mercadoria qualquer, foi utilizada como principal atrativo para despertar o interesses dos empresários do sul e sudeste do país. (...)” P. 180
“(...) o controle do território para a expansão capitalista é o móvel das iniciativas privadas no processo de colonização. (...)” P. 182
Ações fundiárias – uma revisão crítica dos atos e normas disciplinares aplicados pelo Intermat (1978-1990)
“Com a vigência do primeiro Código de Terras do Estado (...) o governo estadual pôde lançar mão de mecanismos que lhe permitiam pôr em prática os objetivos de colonização particular ‘em moldes emprsairais’ e implementar a política de alienação das terras devolutas através da venda e concessões gratuitas. A concessão era feitoa a empresa particulares para a implantação de núcleos coloniais, que promoviam a alienação das terras em lotes de 50 hectares. O governo estadual também concedia terras gratuitamente a pessoas nacionais, de preferência , ou a estrangeiros, em lotes de até 50 hectares, para lavouras, ou em lotes maiores de acordo com a qualidade da terra e sua finalidade. Essa trilha legal facilitou as alienações irregulares e as doações de terras em troca de favores políticos, mas no final esses atos eram justificados e vistos por muitos como necessários ao povoamento do território: (...)” P. 193
“A facilidade para a aquisição de terras era tão grande que escritórios imobiliários foram montados em São Paulo para atrair investimentos do empresariado brasileiro para o Estado. (...)” P. 194
4.2.1 A regularização fundiária: procedimento de legalização ou legitimação
“(...) desde que se anulou o princípio do UTI possedetis ita possideatis, extinguiu-se a possibilidade da posse liberada, excluindo do processo quem não tem condições de compra.” P. 201
4.2.1.2 A regularização sem concorrência pública
“(...) ultrapassando o limite constitucional, caberia mais o exercício do direito preferencial, conforme preceitua a legislação federal, admitindo-se a dispensa de concorrência somente em caratê excepcional. Este tipo de regularização favoreceu mais as ocupações irregulares de médias e grandes propriedades.” P. 205
4.2.1.3 A regularização com concorrência pública
“(...) A forma de aquisição incidia sempre em ônus, porque o beneficiário, mesmo tendo preferência de compra, pagava o valor da terra nua, mais despesas de taxas e emolumentos. Este mecanismo permitiu a regularização de milhares de hectares de terras, sabidamente grilados ou invadidos, considerados ‘ocupações’ para efeito de alienação.” P. 206
“ A estratégia para burlar o limite constitucional consistia no parcelamento da gleba em vários lotes, até o limite máximo permitido, em nome de várias pessoas ligadas por laços de parentesco ou simplesmente que emprestava ou ‘vendiam’ seus nomes para a formalização do processo de habilitação. Para cada lote, eram constituídos processos individuais, onde cada requerente, codificado como ‘laranja’, devia apresentar seus documentos pessoais e do procurador, quando representado, e atender, comprovadamente, a todos os requisitos exigidos por lei, para fazer jus à regularização da ‘posse’. P. 212
“(...) grande parte das irregularidades praticadas ocorreu em nome da política fundiária do Estado, voltada basicamente à venda da terra que, em diversos governos, ocorreu de forma indiscriminada e com fins meramente especulativos.(...)” P. 212 – 213
4.2.1.5 A retificação de limites
“(...) DTC (...) por várias vezes prorrogaram os prazos rituais do processo de concessão, como também criaram, administrativamente, uma figura absurda, denominada ‘permuta’, que permitia a troca da área requerida inicialmente por outra, caso se descobrisse, mais tarde, sua incidência em áreas de terceiros, em áreas indígenas ou reservadas. Afrontando o Código de Terras, diversos governos assumiram a responsabilidade das informações recebidas dos pretensos proprietários , aprisionando de vez a terra para o capital.” P. 219
Cap. 5
Arrecadação e destinação das terras públicas e devolutas – a especulação no processo de acesso à terra em Mato Grosso
“(...) o que sempre prevaleceu como política fundiária em Mato Grosso foi a alienação indiscriminada de terras, inclusive pelo processo de regularização que, pelo direito preferencial, promoveu a titulação de terras invadidas e ou griladas, sendo equiparadas às ocupações de ‘boa fé’.” P. 246
Cap. 6
Alienação das terras devolutas e públicas – concorrência e poder
“O Departamento foi fechado em 1966 (...).
Controlado pelos Cartórios de Fé Pública, o processo de venda, nesse período, caracterizou-se pelas especulações e fraudes de todo tipo, contribuindo com a informação corrente em todo o país, de que o Mato grosso havia vendido mais terras do que efetivamente possuía, chegando a ultrapassar os limites geográficos do seu território.” P. 253
“A burla à lei podia ocorrer durante todo o processo, desde a constituição dos processos-pilotos das glebas arrecadas e matriculadas em nome do Estado de Mato grosso, na fase preliminar das licitações com a desobediência dos prazos do edital, até o ‘fechamento’ da concorrência que, normalmente, já tinham candidatos certos, acobertados por procuradores testas-de-ferro.” P. 255
“(...) Tanto a regularização fundiária como a venda de terras pública foi efetivada dentro de um complexo jogo de interesses, onde nem mesmo os vetos e pareceres contrários da Procuradora Geral do Estado eram levados em consideração, quando contrariavam os objetivos daqueles que estavam envolvidos no processo de alienação.” P. 263
Cap. 7
Procuradores e procurações – Instrumentos de burla e corrupção
“(...) a conseqüência mais grave está na titulação de grandes áreas contíguas, dando origem aos latifúndios improdutivos, num claro mecanismo de burla à Constituição Federal de 1946, que exigia a prévia autorização do Senado Federal para a venda de terras com extensão superior a 10.000 hectares; posteriormente, a Constituição de 1967 reduziu o limite máximo em 3.000 hectares; e a de 1988 em 2.500 hectares. Glebas inteiras e contíguas, com milhares de hectares nos municípios de Aripuanã e Alta Floresta, foram parceladas em lotes de 3.000 hectares, através de processo de regularização, seja pela venda direta, através de licitações engenhosas. (...)
Através de procurações, a burla foi legalizada. (...)” P. 271
Considerações Finais
(...) buscamos revelar a essência do processo de privatização das terras devolutas e públicas, no Estado de Mato Grosso, determinado pela política fundiária adotada pelos diversos governos estaduais, ao longo dos anos. (...)” P. 275
“(...) No auge da expansão da fronteira econômica em toda a Amazônia Legal, exacerbou-se o processo de expropriação, tornando mais acirrada a luta desses povos contra o capital, pois afigurava-se uma luta entre desiguais, envolvendo, de um lado, índios e ou posseiros e, de outro, latifundiários, empresários ou grileiros.” P. 276
“Historicamente, a expropriação dos territórios indígenas está ligada aos movimentos de ocupação e colonização, normalmente relacionados aos ‘surtos’ ou ‘ciclos’ econômicos, que ocorreram no estado a partir do séc. XVIII, e às tentativas de colonização dirigida pelo governo federal.” P. 277
“Após a década de 1940, o processo de ocupação do território e a expropriação das nações indígenas vincularam-se primordialmente aos projetos governamentais de colonização. (...)” P. 278
“O resultado concreto da política indigenista do SPI, aliada à política de colonização oficial e à venda desordenada de terras devolutas no Estado, foi o desaparecimento de aldeias inteiras, pela introdução de doenças como gripe, varíola, sarampo e tuberculose ou pelo extermínio com armas convencionais. (...)” P.279
“(...) grupos econômicos, que entraram na área, forçaram a liberação de certidões negativas pela Funai, que invariavelmente cedia aos seus apelos. (...)” P. 282
“(...) em 20 anos (1975 a 1995), o total de terras privatizadas cresceu de 19% para 55%.” P. 285
“(...) a análise da estrutura fundiária e da organização social do processo produtivo demonstra que, em Mato grosso, o latifúndio ou a grande propriedade, pouco ou escassamente trabalhado, cedeu lugar à grande empresa rural. (...)
O emaranhado e a grande quantidade de leis e decretos que foram sendo criados para disciplinar o processo de acesso à terá, serviu mais para inibir a expansão da pequena propriedade e selar o compromisso dos governantes e com as classes rural e empresarial. (...)” P.287
“(...) É essa articulação entre o poder político e o poder econômico, sustentada pelos mecanismos institucionais e jurídicos, que permitiu a transformação das terras devolutas e públicas no Estado em propriedades privadas, fortalecendo , de um lado, a estrutura fundiária existente e, de outro, criando as condições necessária para a territorialização do capita. Não se pode entender a questão fundiária em Mato Grosso hoje, sem passar pela análise dessa articulação que se revestiu de múltiplos interesses, tendo como motivação essencial a extração da renda fundaria de seu território.” P. 288

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Casa-grande & Senzala (fichamento)

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 42. Ed. Rio de Janeiro: Record.2001.

Gilberto Freyre, na obra “Casa Grande e Senzala”, opta por uma forma específica de apresentar as origens da sociedade brasileira, esta forma é a cotidianidade das relações entre nativos, europeus e africanos. Para tanto, empreende um trabalho minucioso de representação das práticas de cada um desses grupos, apontando para um processo de miscigenação que criou um novo modelo cultural específico da sociedade brasileira.
O retrato de brasileiro produzido por Freyre, fruto do processo de miscigenação, étnica e cultural, nos parece conduzir a um modelo de interpretação muito parecido com aquele idealizado por Turner ao estudar a fronteira nos Estados Unidos, aponta para o fato de que na fronteira não predomina os hábitos do colonizador, mas forja-se um novo modelo cultural de homem com traços daquele que colonizou, mecanismo utilizado inclusive para driblar as situações de adversidade que são típicas em regiões de fronteira. A tese de Turner apresenta uma idéia revolucionária, uma vez que o núcleo da sua teoria é que houve uma adaptação do europeu ao nativo, para sua posterior retomada do legado transatlântico, transformado, no entanto, pela experiência americana, que não teve ampla aceitação de imediato e só veio a ganhar simpatizantes anos depois da feira de Chicago. Segundo WEGNER , as primeiras avaliações foram frias e formais, e somente uma década depois passou a ganhar simpatizantes, até alcançar, na segunda década de nosso século, uma aceitação generalizada entre os historiadores norte-americanos.
Freyre aponta para esse novo homem que foi forjado no território brasileiro, buscando inicialmente o nativo para garantir seus interesses e extraindo desse hábitos que garantiriam sua permanência em terras tão adversas, mais tarde, com a vinda do africano, a quem é atribuída parcela importante da modificação dos hábitos do europeu.
Outro conceito que nos parece ser relevante para pensar a obra Casa-grande & Senzala é o de transculturação (Sahlins, 2003), ao fazer referência às três matrizes culturais que constituíram a sociedade brasileira, Freyre, mesmo com posicionamentos intelectuais de período bastante diverso de Sahlins, parece apontar para a existência de “culturas diferentes com historicidades diferentes” (Sahlins, 2003:11).
As críticas à obra (inúmeras e as mais variadas), não parece suprimir a importância de uma interpretação sui generis acerca da constituição da sociedade brasileira.

Fichamento.
Gilberto Freyre
Uma Introdução a Casa-Grande & Senzala.
Darcy Ribeiro
“(...) ele gosta que se enrosca de si mesmo (...).
(...) em torno dele se orquestra um culto que Gilberto preside contente e insaciável.(..)
(...) ficamos todos mais brasileiro com a sua obra.(...)
(...) Gilberto Freyre escreveu, de fato, a obra mais importante da cultura brasileira.” P. 11
“ Creio que poderíamos passar sem qualqer dos nossos ensaios e romances, ainda que fosse o melhor que se escreu no Brasil. Mas não passaríamos sem Casa-Grande & Senzala, sem sermos outros. (...)
(...) um homem com estudos universitários no estrangeiro que freqüentava candomblés, gostava da boa comida baiana e conhecia cachaça fina. Um homem ávido de viver e de rire, que tinha prazer em admirar e gosto em louvar. (...)
(...) Casa Grande & Senzala aconteceu em 1933 como algo explosivo, de insólito de realmente novo, a romper anos e anos de rotina e chão batido. (...) P. 12
“ Evidenciados esses fatos, a questão que se coloca é saber como pôde o menino fidalgo dos Freyre; o rapazinho anglófilo do Recife; o moço elitista que viaja para os Estados Unidos querendo fazer-se protestante para ser mais norte-americano; o oficial de gabinete de um governador reacionário- como pôde ele- aparentemente tão inapto para esta façanha, engendrar a interpretação arejada e bela da vida colonial brasileira que é Casa Grande & Senzala.(...)
(...) O certo é que o fidalgote GF ajudou como ninguém o Brasil a tomar consciência de suas qualidades, principalmente das bizarras. (...) P. 13
(...) Gilberto é sucessivamente senhorial, branco, cristão, adulto, maduro, sem deixar de ser o oposto em outros contextos, ao se vestir e sentir excravo, herege, índio, menino, mulher, efeminado. As dualidades não se esgotam aí mas se estendem nas de pai-e-filho, senhor-e-escravo, mulher-e-marido, devoto-e-santo, civilizado-e-selvagem, que Gilberto vai encarnando para mostrar-se pelo direito e pelo avesso, página após página, linha por linha.” P. 14
“(...) É duvidoso que esta forma de compor se justifique muito no plano da ciência, mas não há nenhuma dúvida de que ela é excelente no plano literário.” P. 15
“(...) não há precedente de nenhum estudioso que tenha rejeitado tão veementemente quanto Gilberto o que todos consideram como a linguagem apropriada, a terminologia especializada, a expressão adquada, ou seja, esse linguajar sombrio e solene, em geral pesadíssimo, com que os cientistas escrevem ou, no máximo, esta língua elegante, imaginosa, discretamente poética que uns poucos alcançam em alguns textos muito especiais.(...)
O que mais ressalte em CG&S é a combinação bem-sucedida de suas qualidades de estudo científico documentadíssimo e cheio de agudas observações, com as de cração deliberadamente literária. (...) saber e a arte (...)a ciência, além de fazer-se mais inteligentes (...) e de libertar-se de uma quantidade de modismos, que compõe um livro que se lê com prazer.” (...) P. 16 e 17
“Uma leitura atenta de GF revela, também, muita contradição íntima entre os valores professados e os valores realmente atuantes como seus critérios existenciais. Sirva de exemplo o sadomasoquismo que ele atribui ao brasileiro. Sadismo ao branco, masoquismo do índio e do negro. (...)” P. 17
(...) não seria mais do que um atavismo social, um laivo do puro gosto de sofrer, de ser vítima ou de sacrificar-se, que singularizaria o brasileiro comum.
Entusiasmado com sua descoberta, GF a generaliza, procurando explicar o conservadorismo brasileiro pela precocidade com que saímos do regime escravocrata, o que resultaria, por um lado, no sadismo do mando, disfarçado de princípio de Autoridade e defesa da ordem e, por outro lado, nos traços binários de sadistas-masoquistas, senhores-escravos, doutores-analfabetos. (...)
(...) Em sua propensão a tudo esconder atrás de um suposto relativismo cultural, esta antropologia se torna capaz de apreciar favoravelmente as culturas mais elementares e até de enlanguecer-se em saudosismo do bizarro e em amores estremecidos pelo folclórico. (...) Em lugar disso o que faz é justificar o despotismo.” P. 18
“Afinal, que é a história, senão esta reconstituição alegórica do passado vivente que nos ajuda a compor nosso discurso sobre o que estamos sendo?(...)
(...) Ao longo das páginas de CG&S, atiçados por GF, vamos imaginando, vendo e sentino o que foi atra´ves dos séculos o Brasil, em seu esforço de construir-se a si próprio como produto indesejado de um projeto que visava a produzir açúcar, ouro e café ou, em essência, lucros, mas que resultou em engendrar um povo inteiro.” P. 19
“(...) CG&S, tal como foi composta, não aspira à formulação de uma teoria geral sobre coisa alguma. O que ela quer é levar-nos pela mão, ao engenho, a um engenho que não existe- à abstração-engenho feita de todos os engenhos concretos de que Gilberto teve notícia – para mostrá-lo no que ele poderia ter sido, no que terá chegado a ser naquel Nordeste do Brasil de 1600 a 1800.” P. 21
(...) Trata-se (...) de procurar ver como gentes, organizada ou não em família, representando diferentes papéis recíprocos, produzem e reproduzem a si mesmas e às suas formas de vida, pela procriação, pelo trabalho e através de formas coletiva de culto. (...) Sobretudo, porque o olho que olha é olho do que veem ainda do lado de ciad.
O que desjo dizer aqui é, tão-só, que obviamente tem conseqüências o fato de que quem escreveu CG&S não ser um estranho, mas sim o protagonista de elite, fidalgo, minoritários na inumerável massa humana, que edificou com suor aquela civilização. Naturalmente, o escravo não fez tudo sozinho porque trabalhou debaixo de ordens de um capataz que sabia muito, e este debaixo da vigilância de um senhor que, se não sabia nada, era quem sabia mais dos aspectos traficanciais do negócio.” P.24
“ É Gilberto por isso um alienado? – Não! O que lhe sobre é autenticidade. Ele fala não só de cátedra, fala como um íntimo e fala convincentemente, como um conivente confesso. Não é nesta intimidade, entretanto, que resido o segredo resgatável da “metodologia” de Gilberto. Seria como pensar que quem sabe mesmo de tuberculose são os tuberculosos. Gilberto é sábio porque à sua proximidade e identificação de observador não participante- mas mancomunado- ele alia a qualidade oposta, que é a visão de fora – o olho de inglês (...) -, a capacidade de ver o bizarro on de o pernambucano da melhor cepa não veria nada.
A teoria subjacente da obra de GF parece ser a da causação circular, formulada mais tarde pelos funcionalistas. A ideia básica aqui é a de que, como tudo pode chegar a se, em dadas circunstância, a causa de qualquer coisa, não há na verdade nenhuma causa suficiente de nada. (...) P. 25
(...)De fato, CG&S é uma acumulação de observações minuciosas e de apreciações abrangentes, combinada com um método que se prestou admiravelmente ao propósito de dar uma visão de conjunto e um conhecimento interno de uma sociedade real, vivente, concreta e unívoca. (...) P. 25 – 26
(...) O que a maioria dos cientistas e dos ensaístas brasileiros faz é, no máximo, ilustra com exemplos locais a genialidade das teses de seus mestres. Não foi assim com Gilberto. De um lado, porque Boas não tinha teorias que devessem ser comprovadas ou ilustradas com material brasileiro. De outro lado, porque o que ele pedia a seu discípulo era que realizasse operações detalhadas de observação e de interpretação de realidades viventes para compor, depois, com matéria de lavra própria, sua ética e sua estética de opereta.” P.26
“ O mais admirável em Gilberto Freyre, tão anglófilo e tão achegado aos norte-americanos, é que ele não se tenha colonizado culturalmente. O risco foi enorme. (...) Em Casa Grande & Senzala simplesmente não há método nenhum. Quero dizer, nenhuma abordagem a que o autor tenha sido fiel. Nenhum método que o leitor possa extrair da obra, como um enfoque aplicável em qualquer parte.” P. 27
“O tema de Casa-Grande & Senzala é o estudo integrado do complexo sociocultural que se construiu na zona florestal úmida do litoral nordestino do Brasil, com base na monocultura latifundiária de cana-de-açúcar, na força de trabalho escrava, quase exclusivamente negra; na religiosidade católica imprgnada de crenças indígen as e de práticas africanas; no domínio patriarcal do senhor de engenho, recluído na casa-grande com sua esposa e seus filhos, mas polígamo, cruzando com as negras e as mestiça.” P.28-29
“(...) Mas é uma pena que a miopia fidalga de Gilberto não lhe tenha permitido reconstituir essa matiz do Brasil, esta não-família, esta antifamília matricêntrica de ontem e de hoje, que é a mãe pobre, preta ou branca, parideira, que gerou e criou o Brasil-massa.” P. 29
“Para GF o índio é o silvícola nômada, de cultura ainda não agrícola, apesar das lavouras de mandioca, cará, milho, jerimum, mamão, praticada pelas tribos menos atrasadas. Só nesta lista há fatos suficientes para falr-se de uma gricultura tropical, desenvolvida pelo indígena, que haveria retirado todas essas espécies de do estado selvagem, convertendo-as em plantas domésticas; (...)” P. 32
“Onde Gilberto Freyre nos dá um painel realmente expressivo, onde ele indaga com maior liberdade e isenção, onde ele renova corajosamente a visão brasileira, é no exame do papel desenraizador do jesuíta. (...)” P. 34
(...) enfeitiçado pela famulagem doméstica, ele não olha nem vê o negro massa, o negro multidão.” P. 38

Prefácio à 1ª. Edição
“ Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; dominadores absolutos dos negros importados da África para o durão trabalho da bagacera, os europeus e seus descendentes tiveram entretanto de transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos.(...) P. 46
“Spengler salienta que uma raça não transporta de um continente a outro; seria preciso que se transportasse com ela o meio físico. (...) P. 47
“(...) Basta comparar-se a planta de uma casa-grande brasileira do século XVI com a de um solar lusitano do século XV para sentir a diferença enorme entre o português do reino e o português do Brasil.(...)” P. 48
“(...) a casa-grande principal não foi apenas fortaleza, capela, escola, oficina, santa casa, harém, com convento de moças , hospedaria. Desempenhou outra função importante na economia brasileira: foi também banco.(...) P. 52
“ Em contraste com o nomadismo aventureiro dos bandeirantes – em sua maioria mestiços de brancos com índios – os senhores das casas-grandes representaram na formação brasileira a tend~encia mais caracteristicamente portuguesa, isto é, pé-de-boi, no sentido de estabilidade patriarcal. Estabilidade aboiada no açúcar (engenho) e no negro (senzala). (...)” P. 54
“A casa-grande, embora associada particularmente ao engenho de cana, ao patriarcalismo nortista, não se deve considerar expressão exclusiva do açúcar, mas da monocultura escravocrata e latifundiária em geral: criou-a no Sul o café taão brasileiro como no Norte o açúcar. (...)” P. 55
(...) Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em Cuma vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos.” P. 56
“(...) Ensaio de Sociologia genética e de História social, pretendendo fixar e às vezes interpretar alguns dos aspectos mais significativos da formação da família brasileira.” P.61
Cap. I
Características Gerais da Colonização Portuguesa do Brasil: Formação de uma sociedade Agrária, Escravocrata e Híbrida
“Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição. (...) P. 79
“ A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, culutral de povo indefinido entre a Europa e a África. (...) P. 80
“A mobilidade foi um dos segredos da vitória portuguesa; sem ela não se explicaria tem um Portugal quase sem gente, um pessoalzinho ralo, insignificante em número (...) conseguido salpicar virilmente do seu resto de sangue e de cultura populações tão diversa e a tão grandes distância uma das outras: na Ásia, na África, na América, em numerosas ilhas e arquipélagos. (...) “ P. 83
“(...) o nosso lirismo amoroso não revela outra tendência senão a glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues, quindins e embelegos muito mais do que as “virgens pálidas” e as “louras donzelas”. (...)
“Outra circunstância ou condição favoreceu o português, tanto quanto a miscibilidade e a mobilidade, na conquista de terras e no domínio de povos tropicais: a aclimatabiliade.” P.85
“(...) os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e qualidades de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de se retardarem como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses.” P. 86
“O português(...): por todas aquelas felizes predisposições de raças de mesologia e de cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unido-se com mulher de cor. (...) os potugueses que pela hibridização realizariam no Brasil obra verdadeira de colonização, vencendo a adversidade do clima.” P. 87
“ O português, no Brasil teve de mudar quase radicalmente o seu sitema de alimentação, cuja base se deslocou, com sensível déficit, do trigo para a mandioca.(...) A esse respeito o colonizador inglês dos Estados Unidos levou sobre o português do Brasil decidida vantagem, ali encontrando condições de vida física e fontes de nutrição semelhantes às da mãe-pátria (...) A falta desses recursos como a diferença nas condições meteorológicas e geológicas em que teve de processar-se o trabalho agrícola realizado pelo negro mas dirigido pelo europeu dá à obra de colonização dos portuguese um caráter de obra criadora, original, a que não pode aspirar nem a dos ingleses na América do Norte nem a dos espanhóis na Argentina.” P. 89
“No Brasil, como nas colônias inglesas de tabaco, de algodão e de arroz da América do Norte, as grandes plantações foram obra não do Estado colonizador, sempre somítico em Portugal, mas de corajosa iniciativa particular.(...)” P. 91
“(...) Foi a iniciativa particular que, concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente como era exigência real, as muitas léguas de terra em bruto que o trabalho negro fecundaria. (...)” P.92
“Atraídos pelas possibilidades de uma vida livre, inteiramente solta, no meio de muita mulher nua, aqui se estabeleceram por gosto ou vontade própria muitos europeus do tipo que Paulo Prado retrata em traços de forte realismo. Garanhões desbragados.” P.95
“O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça. (...) Handelmann notou que para ser admitido como colono do Brail no século XVI principal exigência era professar a religião cristã:(...)” P.102
“A cana-de-açúcar começou a ser cultivada em São Vicente e em Pernambuco, estendendo-se depois à Bahia e ao Maranhão a sua cultura, que onde logrou êxito (...) trouxe em conseqüência uma sociedade e um gênero de vida de tendências mais ou menos aristocráticas e escravocratas. (...) P. 104
“Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu sobre o desenvolvimento físico a eficiência econômica do brasileiro no mesmo mau sentido do clima deprimente e do solo quimicamente pobre. A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o nas suas fontes de nutrição e de vida.” P. 107
“ Na zona agrícola tamanho foi sempre o descuido por outra lavoura exceta a da cana-de-açúcar ou a do tabaco, que a Bahia, com todo o seu fasto, chegou no século XVIII a sofrer de ‘extraordinária falta de farinha’, pelo que de 1788 em diante mandaram os governadores da capitania incluir nas datas de terra a cláusula de que ficava o proprietário obrigado a plantar ‘ mil covas de mandioca por cada escravo que possuísse empregado na cultura da terra’.” P. 109
“ Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a alimentação da sociedade brasileira nos século XVI, XVII e XVIII. (...)
Nem frutas nem legumes; que então tirados verdes para escaparem à gana dos passarinhos, dos tapurus e dos insetos. A carne que se encontrava era magra, de gado vindo de longe, dos sertões, sem pastos que o refizessem da penosa viagem. Porque as grandes lavouras de açúcar ou de tabaco não se deixavam manchar de pastos pra os bois descidos dos sertões e destinados ao corte. Bois e vacas que não fossem os de serviço eram como se fossem animais danados para os latifundiários.” P.112
“ O escravo negro no Brasil parece-nos ter sido, com todas as deficências do seu regima alimentar, o elemento melhor nutrido em nossa sociedade patriarcal, e dele parece que numerosos descendentes conservaram bgons hábitos alimentares, explicando-se em grande parte pelo fator dieta (...) ascendência africana muitas das melhores expressões de vigor ou de beleza física em nosso país: (...)” P. 116
“À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a desvantagem tremenda da sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro- talvez o tipo ideal do homem moderno para os trópico, europeu com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-lo. (...)
De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido, depois da má nutrição a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia econômica do mestiço brasileiro. (...)
Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. (...)
Sob o ponto de vista da miscigenação foram aqueles povoadores à-toa que prepararam o campo para o único processo de colonização que teria sido possível no Brasil: o da formação, pela poligamia – (...) – de uma sociedade híbrida. (...)” P. 119
“Uma circunstância significativa resta-nos destacar na formação brasileira: a de não ter se processado no puro sentido da europeização. Em vez de dura e seca, rangendo do esforço de adaptar-se a condições inteiramente estranhas, a cultura européia se pôs em contado com a indígena, amaciada pelo óleo da mediação africana. (...) P. 123-124
“ Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade,(...)um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.” P. 125
Cap. II
O Indígena na Formação da Família Brasileira
“(...) a colonização européia vem surpreender nesta parte da América quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semicivilizações americanas.” P. 161
“Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; (...) P. 163
(...) A transigência com o elemento nativo se impunha à política colonial portuguesa: as circunstâncias facilitaram-na. A luxúria dos indivíduos, solts sem família, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razões do Estado no sentido de rápido povoamento mestiço da nova terra. (...)” P. 164
“Mas é só a partir do meado do século XVI que pode considerar-se formada, diz Basílio de Magalhães, ‘ a primeira geração de mamelucos’; os mestiços de portugueses com índios, com definido valor demogênico e social. Os formados pelos primeiros coitos não oferecem senão o interesse, (...) de terem servido de caço ou de forro para a grande sociedade híbrida que is constituir-se. (...)” P. 165
“ Havia entre os ameríndios desta parte do continente, como entre os povos primitivos em geral, certa fraternidade entre o homem e o anima, certo lirismo mesmo nas relações entre os dois. (...)” P. 170
“Era natural a europeus surpreendidos por uma moral sexual tão diversa da sua concluírem pela extrema luxúria dos indígenas; entretanto, dos dois povos, o conquistador talvez fosse o mais luxurioso. “ P. 172
“Mas para os selvagens da América do Sul o vermelho não era só, ao lado do preto, cor profilática, capaz de resguardar o corpo humano de influência maléficas; nem cor tonificante, com a faculdade de dar vigor às mulheres parida e aos convalescentes e resistência aos indivíduos empenhados em trabalho duro ou exaustivo; nem a cor da felicidade, com o poder mágico de atrair a caça ou caçador (..). Era ainda a cor erótica, de sedução ou atração, menos por beleza ou qualidade estética do que pro magia: a cor de que se pintavam os mesmos Canelo para seduzir mulher; (...)” P. 178
“(..) não nos esqueçamos, entretanto, de atentar no que foi para o indígena, e do ponto de vista de sua cultura, o contato com o europeu. Contato dissolvente. Entre as populações nativas da América, dominadas pelo colono ou pelo missionário, a degradação moral foi completa como sempre acontece ao juntar-se uma cultura, já adiantada, com outras atrasadas.” P. 179
“Entre os seus era a mulher índia o principal valor econômico e técnico. Um pouco besta de carga e um pouco escrava do homem. Mas superior a ele na capacidade de utilizar as cousas e de produzir o necessário à vida e ao conforto comuns.” P. 186
“A culinária nacional – (...) – ficaria empobrecida, e sua individualidade profundamente afetada, se se acabasse com os quitutes de origem indígena: eles dão um gosto à alimentação brasileira que nem os pratos de origem lusitana nem os manjares africanos jamais substituiriam. (...) P. 192
“ Da tradição indígena ficou no brasileiro o gosto pelos jogos e brinques infanir de arremedo de animais: o próprio jogo de azar, chamado do bicho, taão popular no Brasil, encontra base para tamanha popularidade no resíduo animista e totêmica de cultura ameríndia reforçada depois pela africana. (...)” P. 204
“Ao atingir a puberdade cortavam-lhe o cabelo no estilo que Frei Vicente do Salvador descreve como de cabelo de frade; também à menina cortava-se o cabelo à homem. A segregação do menino, uma vez atingida a puberdade, nos clubes ou casas secretas dos homens, chamadas baito entre as tribos do Brasil Central, parece que visava assegura ao sexo masculino o domínio sobre o feminino: educar o adolescente para exercer esse domínio. (...) o menino aprendia a tatá a mulher de resto; a sentir-se sempre superior a ela; a abrir-se em intimidade não com a mãe nem com mulher nenhuma, mas com o pai e com os amigos. (...) Do que resultava ambiente propício à homossexualidade.
(...)Webster (...) nessas organizações secrtas dos primitivos processava-se uma verdadeira educação moral e técnica do menino; o seu preparo para as responsabilidades e privilégios de homem. (...) P. 205
“Do indígena de cultura totêmica e animista, ficaria no brasileira, especialmente quand menino, uma atitude insensivelmente totêmica e animista em face das plantas e dos animais (...). É o folclore, são os contos populares, as superstições, as tradições que o indicam. (...)” P. 208
“(...) O brasileiro é por excelência o pova da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influência estranhas; de vez em quando os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos. Daí o sucesso em nosso meio de alto e do baixo espiritismo.” P. 209
“ A melhor atenção do jesuíta no Brasil fixou-se vantajosamente no menino indígena. Vantajosamente sob o ponto de vista, que dominava o padre da S.J., de dissolver no selvagem, o mais breve possível, tudo o que fosse valor nativo em conflito sério com a teologia e com a moral da Igreja. (...)” P. 214
“Ficou-nos, (...), dessa primeira dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos, uma de luxo, oficial, outra popular, para o gasto – (...)” P. 216
“(...)Verifica-se (...) desde oprimeiro século a contemporização hábil do estilo religios ou católico de ladainha co as formas de canto indígena. (...)” P.218
“Tudo se processou através do escravo ou do “administrado”, cuo braço possante era “a só riqueza, o único objeto a que tendiam as ambições dos colonizares”. Até que essa riqueza se foi corrompendo sob os efeitos disgênicos do novo regime de vida. O trabalho sedentário e contínuo, as doenças adquiridas ao contato dos brancos, ou pela adoção, forçada ou espontânea, dos seus costumes a sífilis, a bexiga, a disenteria, os catarros forma dando cabo dos índios: do seu sangue, da sua a vitalidade , da sua energia. “ P. 222
“(...) o Brasil é dos países americanos onde mais se tem salvo da cultura e dos valores nativos. (...) se desde o primeiro contato com a cultura indígena feriu-a de morte, não foi para abatê-la de repente, com a mesma fúria dos ingleses na América do Norte. Deu-lhe tempo de perpetuar-se em várias sobrevivências úteis.” P. 225-226
Cap. III
O Colonizador Português: Antecedentes e Predisposições
“O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos , que de longe se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. (...) plasticidade social, maior no português que em qualquer outro colonizador europeu.” P. 255
“A descoberta do Brasil enquadra-se no grande programa marítimo e comercial inaugurado pela viagem de Vasco da Gama;(...)”
O Brasil foi como uma carta de paus puxado num jogo de trunfo em ouros. P. 263
“Os que dividem Portugal em dois, um louro, que seria o aristocrático, outro moreno ou negróide, que seria o plebeu, ignoram o verdadeiro sentido da formação portuguesa. Nesta andaram sempre revezando-se as hegemonias e os predomínios não só de raça como de cultura e de classe. (...)” P. 266
“Portugal é por excelência o país europeu do louro transitório ou do meio-louro. (...) P. 268
“Que a invasão moura e berbere não foi a primeira a alagar de pardo ou de preto os extremos meridionais da Europa, particularmente Portugal – (...) – já ficou indicado. Indicada a possibilidade de ter sido de origem africana o fundo considerado indígena da população peninsular. De modo que ao invadirem a Península, árabes, mouros, berberes, muçulmanos foram-se assenhoreando de região já amaciada pelo sangue e pala sua cultura; e talvez mais sua do que da Europa. Sua por esse passado humano; e, em largos trechos, pelo clima, pela vegetação.” P. 273
“(...) em país nenhum, dos modernos, tem sido maior a mobilidade de uma classe para outra e, digamos assim, de uma raça para outra, do que em Portugal. (...)” P. 274
“Inúmeras as famílias nobres que em Portugal, com na Espanha, absorveram sangue de árabe ou mouro. Alguns dos cavaleiros que mais se salientaram nas guerras de reconquista pelo ardo mata-mouros do seu cristianismo conservaram nas veias sangue infiel. Muito terá sido, por outro lado, o sangue espanhol ou português, ortodoxamente cristão, que, dissolvido no de maometanos, emigrou para a África Menos. (...)” P. 278-279
“Refere Alexandre Herculano que, após a invasão acompanhada de intensa miscibilidade, tornaram-se comuns os nomes mistos: (...). O que dá bem a ideia da contemporização social entre vencidos e vencedores. Ideia exata de quanto foi plástica, movediça e flutuante a sociedade moçárabe em Portugal.” P. 279
“Diversos outros valores materiais, absorvidos da cultura moura ou árabe pelos protugueses, tranmitiram-se ao Brasil: a arte do azulejo que tanto relevo tomou em nossas igrejas, conventos, residência, banheiro, bicas e chafarizes; a telha mourisca; a janela quadriculada ou em xadrez; a gelosia; o abalcoado; as paredes grossas. Também o conhecimento de vários quitutes e processos culinários, certo gosto pelas comidas oleosas, gordas, ricas em açúcar. O cuscuz, hoje tão brasileiro, é de origem norte-africana.” P. 284-285
“Um ponto nos surge claro e evidente: a ação criadora, e de modo nenhum parasitária das grandes corporações religiosas(...) na formação econômica de Portugal. Eles foram como que os verdadeiros antecessores dos grande proprietários brasileiros. (...)”P. 295
“Colonizou o Brasil uma nação de homens mal nutridos. (...)
A deficiência não foi, porém, só de carne de vaca: também de leitoe e de vegetais. (...) P. 297
“Os jejuns devem ser tomados na dvida conta por quem estudo o rgime de alimentação do povo português, sobretudo durante os séculos em que sua vida doméstica andou mais duramente fiscalizada pelo olar severo da Inquisição. Da Inquisição e do jesuíta. Dois olhos tirânicos, fazendo as vezes dos de Deus. Fiscalizando tudo.” P. 299
“Engana-se, ao nosso ver, quem supõe ter o português se corrompido na colonização da África, da Índia e do Brasil. Quando ele projetou por dois terços do mundo sua grande sombra de escravocrata, já suas fontes de vida e de saúde econômica se achavam comprometidas. (...) P.302
“Para a escravidão, saliente-se mais uma vez que não necessitava o português de nenhum estímulo. Nenhum europeu mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele. No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o português de ter manchado, com instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização tropical. (...)” P. 304
“(...) Mesmo nos nomes de doces e bolos de convento, fabricado por mãos seráficas, de freiras, sente-se às vezes a intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confundir-se com o místico: (...). Não podendo entregar-se em carne a todos os seus adoradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelo. Estes adquiriam uma espécie de simbolismo sexual. (...)” P. 311
“O português no Brasil muito transigiu com a higiene nativa, quer a da habitação quer a pessoal. Na pessoal, adotando o banho diário e desembaraçando as crianças dos cueiros e abafos grossos. Na da habitação, adotando dos índios a coberta de palha, como adotara dos asiáticos a parede grossa e o alpendre. Também teve o bom senso de não desprezar de todo os curandeiros indígenas pela medicina oficial, apesar dos jesuítas declararem àqueles guerra de morte. (...)”P. 315
“A questão da degenerescência de europeus que se têm conservado relativamente puros no Brasil é dificílima de apurar diante das condições de instabilidade social características de nossa formação agrária. (...)” P. 318
“(...)Foi (..) em que se fundou a colonização aristocrática do Brasil: em açúcar e em negros.” P.321
“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – (...) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. (...)” P. 343
“Não nos interessa, senão indiretamente, nesse ensaio, a importância do negro na vida estética, muito menos no puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muito maior, ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do português.” P. 344
(...) Por todos esses traços de cultura material e moral revelaram-se os escravos negros, dos estoque mais adiantados, em condições de concorrer melhor que os índios à formação econômica e social do Brasil. Às vezes melhor que os portugueses.” P.346
“Tais contrastes de disposição psíquica e de adaptação talvez biológica ao clima quente explicam em parte ter sido o negro na América Portuguesa o maior e mais plástico colaborador do branco na obra de colonização agrária; o fato de haver até desempenhado entre os indígenas uma missão civilizador no sentido europeizante.(...)” P. 348
“Nada se negam diferenças mentais entre brancos e negros. Mas até que ponto essas diferenças representam aptidões inatas ou especializações devidas ao ambiente ou às circunstância econômicas de cultura é problema dificílimo de apurar. (...)
Lowi parece-nos colocar a questão em seus verdadeiros termos. Como Franz Boas, ele considera o fenômeno das diferenças mentais entre grupos humanos mais do ponto de vista da história cultural e do ambiente de cada um do que da hereditariedade ou do meio geográfico puro. (...) P. 356
(...) importaram-se para o Brasil, da área mais penetrada pelo Islamismo, negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas com à da grande maioria dos colonos brancos- (...)” P. 357
“ As evidência histórica mostram assim, ao lado das pesquisas antropológicas e de lingüística realizadas por Nina Rodrigues entre os negros da Bahia, a frouxa base em que se firma a ideia da colonização exclusivamente banto do Brail. Ao lado da língua banto, da quimbunda ou congoense falaram-se entre os nossos negros outras línguas-gerais: a gege, a haúça, a nagô ou ioruba – que Varnhagen dá como mais falada do que o português entre os antigos negros da Bahia. Língua ainda hoje prestigiada pelo fato de ser o latim do culto gege-iorubano.” P. 360
“O Brasil não se limitou a recolher da Áfriaca a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicas para as minas. Artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos. (...)” P. 365
“Goldenwiser salienta quanto é absurdo julgar-se o negro, sua capacidade de trabalho e sua inteligência, através do esforço por ele desenvolvido nas plantações da América sob o regime da escravidão. O negro deve ser julgado pela atividade industrial por ele desenvolvida no ambiente de sua própria cultura, com interesse e entusiasmo pelo trabalho.
(...) A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.” P. 371
“O negro no brsil, nas suas relações com cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da História social e econômica. Da Antropologia cultura. Daí ser impossível – (..) – separá-lo da condição degradante de escravos, dentro da qual abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e normais para acentuaram-se outra, artificiais e até mórbidas. (...) P. 377
“As histórias portuguesas sofreram no Brasil consideráveis modificações na boca das negras velhas ou amas-de-leite. Forram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias. Os africanos, lembra A. B. Ellis, possuem os seus contistas. ‘Alguns indivíduos fazem profissão de contar histórias e andam de lugar em lugar recitando contos.’ ” P. 386
“Quanto maior crueldade das senhoras que dos senhores no tratamento dos escravos é fato geralmente observado nas sociedades escravocratas. Confirmam-no os nossos cronistas. Os viajantes, o folclore, a tradição oral. Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes.(...)” P. 392
“O que os casamentos entre parentes tão comuns no Brasil do tempo da escravidão, nunca impediram, foi que lutas tremendas separassem primos e até irmãos, genros e sogros, tios e sobrinhos, extremando-os em inimigos de morte; que grandes famílias se empenhassem em verdadeiras guerras por questões de heranças ou de terras, às vezes por motivos de honra ou de partidarismo político. (..)” P. 397
“(...) A religião tornou-se oponto de encontro e de confraternização entre as duas cultura, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível ou dura bareira. (...)
A liberdade do escravo de conservar e até de ostentar em festa pública – (...) – formas e acessórios de sua mítica, de sua cultura fetichista e totêmica, dá bem a ideia do processo de aproximação das duas culturas no Brasil. (...)” P. 410
“A mortalidade infantil vimos que foi enorme entre as populações indígenas desde o século XVI. Naturalmente devido ao contato perturbador e disgênico com a raça conquistadora. (...)” P. 418
“As causas da mortalidade infantil no Brasil do tempo da escravidão – (...) – fixa-as principalmente ao sistema econômico da escravidão, isto é, aos costumes sociais dele decorrentes: a falta de educação física e moral e intelectual das mães; desproporção na idade dos cônjuges; freqüência de nascimentos ilícitos. Devendo acrescentar-se: o regime impróprio da alimentação; o aleitamento por escravas nem sempre em condições higiênicas de criar; a sífilis dos pais ou das amas. (...)” P. 420
“O menino do tempo da escravidão parece que descontava os sofrimentos da primeira infância – (..) – tornando-se dos cinco aos dez anos verdadeiro menino-diabo. (...)” P. 421
“Nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de conservar filhos maricas ou donzelões. O folclore da nossa antiga zona de engenho de cana e de fazendas de café quando se refere a rapaz donzelo é sempre em tom de debique: para levar o maricas ao ridículo. O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro, como ainda hoje se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinha. E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital paternos.
Se este foi sempro o ponto de vista da casa-grande, como responsabilizar-se a negra da senzala pela depravação precoce do menino nos tempos patriarcais? O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não:ordem.(...)” P. 425
“(...) Ninguém nega que a negra ou a mulata tenha contribuído para a precoce depravação do menino branco da classe senhoril; mas não por si, nem como expressão de sua raça ou do seu meio-sangue: como parte de um sistema de economia e de família: o patriarcal brasileiro.” P.426
“(...) O mesmo interesse econômico dos senhores em aumentar o rebanho de escravos que corrompeu a família patriarcal no Brasil e em Portugal corrompeu-a no sul dos Estados Unidos.
(...) fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e muleques e mulatas o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações do sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu,como um deus poderoso, em senhores e escravos.(...)” P. 430
Cap. V
O Escravo Negro na Vida Sexual e de Família do Brasileiro (continuação)
“Meninos-diabos eles só eram até os dez anos. Daí em diante tornavam-se rapazes. Seu trajo, o de homens feitos. Seus vícios, os de homens. Sua preocupação, sifilizarem-se o mais breve possível, adquirindo as cicatrizes gloriosas dos combates co Vênus que Spíx e Martius viram com espanto ostentadas pelos brasileiros.” P. 465
“Os pretos e pardos no Brasil não foram apenas companheiros dos meninos brancos nas aulas das casas-grandes e até nos colégios; houve também meninos brancos que aprenderam a ler com professores negros. (...)” P. 468
“Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todo (...)” P482
“(...) E na cidade, com a falta de cemitérios durante os tempos coloniais, não era fácil aos senhores, mesmo caridosos e cristãos, darem aos cadáveres dos negros o mesmo destino piedoso que nos engenhos. Muitos negros foram enterrados na beira da praia: mas em sepulturas rasa, onde os cachorros quase sem esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar. (...) P. 491
“Grandes comezainas por ocasião das festas; mas nos dias comuns, alimentação deficiente, muito lorde falso passando até fome. Tal a situação de grande parte da aristocracia e principalmente da burguesia colonial brasileira e que se prolongou pelo tempo do Império e da República. O mesmo velho hábito dos avós portugueses, às vezes guenzos de fome, mas sempre de roupa de seda ou veludo, dois, três, oito escravos atrás, carregando-lhes escova, chapéu-de-sol e pente. (...)” P. 493
“O grande problema da colonização portuguesa do Brasil – o da gente – fez que ente nós se atenuassem escrúpulos contra irregularidades de moral ou conduta sexual. (...)” P. 495
“(...) na freqüência das uniões irregulares de homens abastados – (...) com negras e mulatas, devemos enxergar um dos motivos da rápida e fácil dispersão da riqueza nos tempos coloniais, com prejuízo, não há dúvida, para a organização da economia patriarcal e para o Estado capitalista, mas com decididas vantagens pra o desenvolvimento da sociedade brasileira em linhas democrática.” P. 499
“(...) Às vezes negrinhas de dez,doze anos já estavam na rua se oferecendo a marinheiros enormes, grangazás ruivos que desembarcavam dos veleiros ingleses e franceses, com uma fome doida de mulher. (...)
(...) Mas o grosso da prostituição, foram-no as negras, exploradas pelos brancos. (...)” P. 501
“(...) somos forçados a concluir, antes de nos regozijarmos com os elogios de Burton à pureza das senhoras brasileiras do tempo da escravidão, que muita dessa castidade e dessa pureza manteve-se à custa da prostituição da escrava negra; à custa da tão caluniada mulata; à custa da promiscuidade e da lassidão estimulada nas senzalas pelos próprios senhores brancos.” P. 502
“Um traço importante de infiltração de cultura negra na economia e na vida doméstica do brasileiro resta-nos acentuar: a culinária. O escravo africano dominou a cozinha colonial, enriquecendo-se de uma variedade de sabores novos. (...)” P. 504
“(...) Com a europeização da mesa é que o brasileiro tornou-se um abstêmio de vegetais; e ficou tendo vergonha de suas mais características sobremesas – (...). só se salvou o doce com queijo. É que a partir da Independência os livros franceses de receita de bom-tom começaram o seu trabalho de sapa da verdadeira cozinha brasileira; começou o prestígio das negras africanas de forno e fogão a sofrer consideravelmente da influência européia.” P. 510