sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Caminhos e Descaminhos que levam à Sonora: experiências, recordações e memórias de migrantes.

Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa*



A compreensão dos conceitos historiográficos são fundamentais para o trabalho de representação do espaço de Sonora a partir da historiografia. Said (2001) em seu “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”, aponta que “a análise do texto orientalista, enfatiza a evidência, que de modo algum é invisível, de tais representações como representações, e não como descrições naturais do Oriente” (1990:32).

É necessário ter em vista que o trabalho do historiador não é o de fabricar, produzir um objeto, é muito mais o trabalho da representação por meio da prática de observação, mediada pelo amadurecimento teórico, aliado às práticas dos atores sociais que ocupam aquele espaço, suas vivências, experiências e memórias, juntamente com certas condições materiais que permitiram se organizarem de determinadas formas, trajetórias revividas pelas memórias que trazem à tona e que são ferramentas fundamentais para o trabalho do historiador.

“Em qualquer exemplo, pelo menos da linguagem escrita, não existe nada do gênero de uma presença recebida, mas sim uma re-presença, ou uma representação.” (Said, 1990:33). Neste sentido, as produções no campo da historiografia, são representações de quem escreve, a partir do universo daquele que escreve. Essas são questões que se mantiveram muito presentes na tarefa de reconstruir esse passado de Sonora. A opção teórica por determinados conceitos, sempre tendo em vista um universo de possibilidades que normalmente são negligenciados, muito pela problemática do tempo para a realização da pesquisa, mas muito também pela incompatibilidade de determinados conceitos dentro de um projeto de pesquisa que se intentou trabalhar.

Optou-se por alguns conceitos tais como: fronteira, território, desterritorialização, migrações temporárias e identidade para, a partir deles, empreender um trabalho de reflexão histórica que primasse pela compreensão do processo de constituição de Sonora.

Prima-se pela necessidade de adentrar a história como experiência, perceber as práticas de poder que instituem a representação da cidade, buscar por meio da pesquisa dar conta do movimento que produz a cidade. Sonora, fruto da experiência, resultados de deslocamentos, uma cidade que não cabe em cadeias interpretativas é o resultado da experiência de gente, incluída ou não no processo produtivo, o espaço ao mesmo tempo do lugar daquele que fica e do não-lugar daquele que parte a cada ciclo encerrado no corte da cana.

De acordo com Borges (2006) “o não lugar acaba, por sua vez, transformando-se num lugar especial, diferente e com outras características identitárias, desta vez construída por todas as pessoas que fazem a cidade, e não por apenas um segmento, como normalmente acontece nos lugares muito tradicionais”. Há quem afirme ser uma cidade nova, fruto de práticas muito recentes de ocupação capitalista do território, entretanto, para além do fator econômico que motiva a ocupação, esta é o resultado da dinâmica do movimento de pessoas.

Este trabalho é uma oportunidade de compreender a cidade como movimento, visto que “ os lugares amados são os lugares ‘intatos’, e ninguém concorda com esta afirmação com mais veemência do que aqueles que vivem nos lugares ‘estragados’” (Willians, 1989: 341) intentando compreender que a experiência é algo que se produz nessa cidade, com diria Willians já estragada pelo movimento, não como construção de uma realidade, natural, irreversível, mas como prática de representação dessa realidade. E, “considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles” (Chartier, 1991), é que se torna possível compreender a dinâmica da ocupação de Sonora, a “Princesinha do Norte”.

No tocante à compreensão sobre fronteiras utilizamos os estudos de Waibel, para quem a questão é se ainda “temos tais zonas pioneiras no Brasil e, em caso afirmativo, onde estão localizadas [...] o que exige uma melhor definição dos conceitos de frontier e pionner” (1979: 281).

De grande relevância ainda para o presente estudo foi a obra de Martins (1997), para quem o termo fronteira, no Brasil, é tratado de forma particular por geógrafos e antropólogos. Para os primeiros, como um termo que designa uma zona pioneira ou uma frente pioneira. Os segundos, sobretudo a partir dos anos cinqüenta, definiram essas frentes de deslocamento da população civilizada e das atividades econômicas de algum modo reguladas pelo mercado, como frentes de expansão.

A designação de frentes de expansão formulada por Darcy Ribeiro, como “fronteiras de civilização”, tornou-se uso corrente até mesmo entre antropólogos, sociólogos e historiadores que não estavam trabalhando propriamente com situações de fronteira da civilização. Ela expressa a concepção de ocupação do espaço de quem tem como referência as populações indígenas, enquanto a concepção de frente pioneira não leva em conta os índios e tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor (Martins, 1997).

Tais definições parecem apontar que a concepção dos antropólogos sobre a expansão é mais ampla, pois incorpora os índios, desconsiderados por um grupo de estudiosos.

Pierre Monbeig define os índios alcançados (e massacrados) pela frente pioneira no oeste de São Paulo como precursores dessa mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente à espera da civilização que acabaria com eles. A ênfase original de suas análises estava no reconhecimento das mudanças radicais na paisagem pela construção de ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande escala, como o café e o algodão.

A partir da reflexão dos conceitos de fronteira, zonas pioneiras e zonas de expansão dos autores supramencionados, Martins (1997) se sente à vontade para fazer uma primeira datação histórica: adiante da fronteira demográfica ou da “civilização”, estão as populações indígenas que sofrem as conseqüências dos processos de expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente pioneira, dominada não só pelos agentes da civilização, mas, também, pelos agentes da modernização que se constituem em agentes da economia capitalista que vai além da economia de mercado. São agentes de mentalidade inovadora, urbana e empreendedora (Martins, 1997).

Ao que tudo indica essa mentalidade esteve presente entre os agentes de colonização da região estudada, assunto que exigirá uma atividade intelectual de maior profundidade e que por ora são caminhos pelos quais ainda dou os primeiros passos.

A mão-de-obra que fixou residência no núcleo urbano de Sonora, popularmente conhecida como “Princesinha do Norte” , desempenhava funções totalmente voltadas às atividades agrícolas, e foi justamente o trabalho na lavoura que contribuiu para atrair mais migrantes o que resultou em relativa expansão populacional. Segundo informações obtidas em pesquisa de campo foi possível constatar as dificuldades iniciais que se colocavam ao trabalhador que se fixou nessa região a partir dos anos de 1970.

“No princípio foi muito ruim porque daqui onde nóis trabalhava dava, mais de 40 Km(...), aí moço nóis ia cedo de madrugada, quando dava 04 horas eu levantava, pegava um trator subia a turma dentro numa carreta da roda dura, nóis ai pra lá, quando era de tarde a gente carregava a carreta de madeira e vinha. (...) mais era uma vida sufrida, que eu nunca vi daquele jeito, cedo de madrugada pra lá e de noite pra cá, um frio. (...) Um dia eu disse, essa vida nossa num ta dano não chegá em casa todo arrebentado por dentro.”

Le Goff (1994:143) no tocante ao trabalho com as fontes orais e com depoimento como os supramencionados, afirma que “nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de discernir o que é “falso” , avaliar a credibilidade do documento, mas também desmistificá-los. “Os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estar sujeitos a tratamentos destinados a transformar sua função de mentira em confissão de verdade”. É desta forma que me disponho a trabalhar com as fontes orais em minha caminhada de pesquisa histórica.

Segundo dados coletados na pesquisa de campo, constatou-se a ação de empreiteiros encarregados de trazer trabalhadores de outras regiões para o trabalho no corte de cana durante o período de safra. No decorrer da entrevista com o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais do município o trabalho era contratado por “gatos”. Quando solicitado para que falasse mais a respeito do trabalho das empreiteiras foi obtido a seguinte resposta:

“... empreiteira, a gente fala assim empreiteira, pra não maltratar muito sabe, porque na verdade é gato mesmo, o famoso gato. Então o gato é o seguinte: o que acontece? Quando o trabalhador ganha 10 reais, por exemplo, o gato ganha 20 em cima do trabalho do trabalhador...”



Thompson (1992) considera que “a História Oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da História. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria História e revelar novos campos de investigação (...) pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a História um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”. A entrevista com o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais é elucidativo da existência desse lugar na história que as pessoas atribuem a si próprias. Halbwachs (1990) discute na obra “Memória Coletiva”, a questão de buscarmos fundamentar questões que já conhecemos por meio do depoimento de outras pessoas, afirma que:

“fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos pareçam obscuras. (...) Ora, a primeira testemunha, à qual podemos sempre apelar, é a nós próprios. (...) Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos”.

Para Bauman (2005) “a metodologia utilizada para abordar um assunto busca acima de tudo “revelar” a miríade de conexões entre o objeto da investigação e outras manifestações da vida na sociedade humana”. São essa conexões que tenho buscado fazer em relação ao estudo da região do Vale do Correntes, onde está localizado o município de Sonora no extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul. No intuito de compreender os “ Caminhos e os Descaminhos que Conduzem à Sonora” bem como as políticas de incentivo ao processo de ocupação do extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul a partir de 1970”, busco entender as questões concernentes ao incentivo governamental na forma de créditos subsidiados que possibilitaram a colonização privada na região do Vale do Correntes, onde atualmente está localizado o município de Sonora ao norte do estado de Mato Grosso do Sul, procuro entender ainda a dinâmica da fronteira que levou à formação daquele espaço, bem como a questão de territorialização, desterritorialização e concepções de identidade com base em autores que trabalham com questões concernentes a Territórios e Fronteiras.

A formação daquele território e das identidades ou do embate entre essas identidades que se encontram ali presentes parecem fazer parte de um quadro geral da sociedade brasileira dos anos de 1970 é o que aponta o jornal “Defesa” no ano de 1975.

“O norte do Mato Grosso começa a repetir a tristemente conhecida história da colonização do norte do Paraná , onde a luta pela terra, com o sacrifício físico e sanguinolento dos contendores era lugar comum.

Aqui também, já é comum a luta fratricida por plano de terra. Veja-se a estatística criminal e constate-se que 60% dos crimes ocorridos no norte do estado são oriundo de questões de terras.”

O artigo do jornal Defesa, de 1975 aponta para a questão da formação do território brasileiro e a violência que a constituição desse território teria gerado, isso pode indicar que os embates teriam levado ao fato de que uma parte da população teria tido acesso a esse território enquanto outra parcela desta população teria sido desterritorializada, não nos cabe nos limites do presente texto discutir as questões de formação de propriedades, em que bases e mediante quais métodos, o que interessa nos limites desta produção diz respeito a uma questão de operacionalização de conceitos e ao tratar da questão da desterritorialização, não poderia deixar de citar HAESBAERT (2006), para quem “o mito da desterritorialização é o mito dos que imaginam que o homem pode viver sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se o movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua reconstrução em novas bases (HAESBAERT:2005)”.

O termo desterritorialização é novo, entretanto os argumentos utilizados em torno dessa questão não são inéditos como aponta HAESBAERT (2005), ao afirmar que “muitas posições de Marx em “O Capital” e no “Manifesto Comunista”revelavam claramente uma preocupação com a “desterritorialização”capitalista, seja a do camponês expropriado, transformado em “trabalhador livre”, e seu êxodo para as cidades, seja a do burguês mergulhado numa vida em constante movimento e transformação, onde “tudo que é sólido desmancha no ar”na famosa expressão popularizada por BERMAN (1986)”.

Parece-me que a obra de BAUMAN (2005) caminha de um pólo à outro das concepções apontadas por Haesbaert, visto que para ele ao mesmo tempo que considera “a questão da identidade como estando ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao posterior crescimento da sensação de insegurança, com a “corrosão do caráter” que a insegurança e a flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade”. Considera também a identidade “como algo revelado a ser inventado, e não descoberto”. Em suma, o discurso que procura estabelecer uma identidade é claramente ideológico, defende interesses que não são necessariamente legítimos.

Enquanto para Haesbaert a desterritorialização é um mito e o que existe na verdade são territórios múltiplos, Bauman fala da existência de desterritorializados “num mundo de soberania territorialmente assentada. Ao mesmo tempo que compartilham a situação de subclasse, eles, acima de todas as privações, têm negado o direito à presença física dentro de um território sob lei soberana, exceto em “não-lugares” especialmente planejados, denominados campos para refugiados ou pessoas em busca de asilo a fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas “normais”, “perfeitas”, vivem e se movimenta”.

Ao finalizar este texto compartilho com o leitor, algumas reflexões e analogias que considero possíveis em relação à questão do “não-lugar”, penso que os barracões e alojamentos criados especificamente para os trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, em regiões como a do Vale do Correntes, por exemplo, podem ser entendidos como “não-lugares”, pois é o espaço, onde o trabalhador, desterritorializado de seu lugar de origem e sofrendo os efeitos de uma fragmentação da sua identidade e, em alguns casos até mesmo a perda desta, momentos em que chegam à condição de verdadeiros lixos humanos, habitando a tênue fronteira que os separa da condição de seres humanos, os barracões são espaços de uma vida em suspense, à espera sempre do momento de retorno para os locais de origem onde, em geral o que aguarda a maioria desses trabalhadores é uma situação de marginalização social e pobreza. Destaca-se o fato de que a geração que nasceu nos anos de 1970, está sofrendo os efeitos da formação do mundo contemporâneo, especialmente dos anos de 1990, momento em que as pessoas deixam de ser desempregadas e se tornam “redundantes”, ou seja, passam a não ter mais espaço e conforme as palavras de BAUMAN (2005), passam a ser refugo, lixo. A trajetória dos referidos trabalhadores é marcante, visto que o limite entre exclusão e inclusão é muito tênue.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA



BAUMAN, Zygmunt. “Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi”. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005

BAUMAN, Zygmunt. “Vidas desperdiçadas”. Tradução de Carlos Aberto Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

BERMAN, Marshall. “Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade”. Trad. de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

FIGUEIRA, Ricardo Rezende. “Pisando Fora da Própria Sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo.” Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2004.

HAERBAERT, Rogério. “O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

HALBWACHS, Maurice. “ Memória Coletiva” .São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF. Jacques. “ História e Memória”. São Paulo: editora da UNICAMP, 1994.

MARTINS, José de Souza. “Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano”.São Paulo: Hucitec, 1997.

MONBEIG, Pierre. Os pioneiros. In: Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1984.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

THOMPSON, Edward P. “ A Voz do Passado: História Oral”.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

WAIBEL, Léo. As zonas pioneiras do Brasil. In: “Capítulos de geografia tropical e do Brasil”. 2ª Ed., Rio de janeiro: FIBGE, 1979.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Escravidão por dívida na contemporaneidade

O texto a seguir é um fragmento do livro "Gente Descartável", autoria de Kevin Bales, aponta para uma problemática acerca da qual é fundamental que tomemos conhecimento e nos coloquemos contra, da forma que nos for possível, debatendo a respeito, denunciando. É inconcebível que ainda hoje os casos de exploração humana apontados pelo autor sejam realidade na vida de tantas pessoas.


Kevin Bales


Gente descartável

Lisboa, Editorial Caminho, 2001

(excertos adaptados)



A nova escravatura



No Verão, os campos franceses vivem à altura da sua reputação. Se nos sentamos na rua de uma pequena aldeia a uma centena de quilómetros de Paris, a brisa traz-nos o aroma de maçãs do pomar ao lado. Vim aqui para conhecer Seba, (os foram mudados) uma escrava recentemente liberta. É uma jovem de vinte e dois anos, bonita e animada, mas enquanto me conta a sua história retrai-se em si mesma, fumando furiosamente, tremendo, e depois vêm as lágrimas.



Fui criada pela minha avó no Mali, e quando em ainda menina uma mulher que a minha família conhecia chegou e perguntou-lhe se podia levar-me para Paris para cuidar dos filhos dela. Ela disse à minha avó que me punha na escola e que eu aprenderia francês. Mas quando cheguei a Paris não fui mandada para a escola, tive que trabalhar todos os dias. Fazia todo o trabalho na casa deles; fazia as limpezas, cozinhava as refeições, cuidava das crianças, e lavava e alimentava o bebé. Todos os dias começava antes da 7 horas da manhã e acabava às 11 da noite; nunca tive um dia de folga. A minha patroa não fazia nada; dormia até tarde e depois via televisão ou saía.

Um dia eu disse-lhe que queria ir à escola. Respondeu que não me tinha trazido para França para ir à escola mas para cuidar dos filhos dela. Eu estava cansada e esgotada. Tinha problemas com os dentes; por vezes a cara inchava-me e a dor era horrível. Por vezes tinha dores de estômago, mas quando estava doente tinha que trabalhar na mesma. Às vezes, quando tinha dores, chorava, mas a minha patroa gritava comigo. Eu dormia no chão num dos quartos das crianças; a minha comida eram os restos deles. Não podia tirar comida do frigorífico como as crianças. Se eu tirasse comida, ela batia-me. Balia-me muitas vezes. Estava sempre a dar-me bofetadas. Batia-me com a vassoura, com os instrumentos de cozinha, ou chicoteava-me com cabos eléctricos. Às vezes eu sangrava; ainda tenho marcas no corpo.

Uma vez, em 1992, atrasei-me a ir buscar as crianças à escola; a minha patroa e o marido ficaram furiosos comigo e bateram-me e depois empurraram-me para a rua. Eu não tinha para onde ir; não compreendia nada, e andei pelas ruas. Ao fim de algum tempo o marido encontrou-me e levou-me outra vez para casa deles. Ali despiram-me toda, ataram-me as mãos atrás das costas, e começaram a chicotear-me com um arame amarrado a um pau de vassoura. Batiam-me os dois ao mesmo tempo. Eu sangrava muito e gritava, mas eles continuavam a bater-me. Depois ela esfregou malaguetas nas minhas feridas e enfiou-mas na vagina. Perdi os sentidos.

Algum tempo depois, uma das crianças desatou-me. Fiquei deitada no chão, onde me deixaram vários dias. As dores eram horríveis mas ninguém tratou as minhas feridas. Quando me consegui levantar tive que trabalhar outra vez, mas depois disso fiquei sempre fechada em casa. Eles continuaram a bater-me.



Seba foi finalmente libertada quando um vizinho, depois de ouvir os sons dos insultos e espancamentos, conseguiu falar com ela. Vendo-lhe as cicatrizes e as feridas, o vizinho chamou a polícia e o Comité Francês contra a Escravatura Moderna (CCEM), que abriram um processo e tomaram Seba a seu cuidado. Os exames médicos confirmaram que ela tinha sido torturada.

Hoje Seba está bem tratada, vive com uma família de acolhimento. Está a receber assistência e a aprender a ler e a escrever. A recuperação demorará anos, mas ela é uma jovem notavelmente forte. O que me impressionou foi a distância que Seba ainda tem que percorrer. Enquanto falávamos, compreendi que, embora ela tivesse vinte e dois anos e fosse inteligente, a sua compreensão do mundo era menos desenvolvida que a média das crianças de cinco anos. Por exemplo, até ser libertada tinha pouca noção do tempo — sem conhecimento das semanas, meses ou anos. Para Seba havia apenas a interminável roda do trabalho e do sono. Sabia que havia dias quentes e dias frios, mas nunca aprendeu que as estações seguem um padrão. Se alguma vez soube o dia do seu aniversário tinha-o esquecido, e não sabia a sua idade. Fica desorientada com a ideia de «escolha». A sua família de acolhimento tenta ajudá-la a fazer opções, mas ela ainda não consegue entender isso.

Se o caso de Seba fosse único, seria bastante chocante; mas Seba é uma de entre talvez 3000 escravos domésticos em Paris. Essa escravatura não existe também só em Paris. Em Londres, Nova Iorque, Zurique, Los Angeles, e pelo mundo fora, as crianças são brutalizadas como escravos domésticos. E são apenas um pequeno grupo dos escravos do mundo.

A escravatura não é um horror definitivamente arrumado no passado; ela continua a existir em todo o mundo, mesmo em países desenvolvidos como a França e os Estados Unidos. Por todo o mundo os escravos trabalham e suam e constroem e sofrem. Os escravos no Paquistão podem ter fabricado os sapatos que nós calçamos e o tapete que pisamos. Os escravos das Caraíbas podem ter posto o açúcar na nossa cozinha e os brinquedos nas mãos dos nossos filhos. Na Índia, eles podem ter cosido a camisa que vestimos e polido o anel do nosso dedo. E não lhes pagam nada.

Os escravos tocam também indirectamente as nossas vidas. Eles fizeram os tijolos para a fábrica que produziu o aparelho de TV que nós vemos. No Brasil, os escravos produziram o carvão que temperou o aço que fez as molas do nosso carro e a lâmina do cortador de relva. Os escravos cultivaram o arroz que alimentou as mulheres que teceram o belo pano que você usa nos cortinados. A sua carteira de investimentos e o seu fundo mútuo de pensões possuem títulos de empresas que utilizam trabalho escravo no mundo em vias de desenvolvimento. Os escravos mantêm baixos os seus custos e altos os lucros dos seus investimentos.

A escravatura é um negócio em ascensão e o número de escravos está a crescer. Há pessoas que enriquecem usando escravos. E quando já não precisam dos seus escravos, limitam-se a pôr essas pessoas de parte. Esta é a nova escravatura, que se centra nos grandes lucros e nas vidas baratas. Não se trata de possuir pessoas no sentido tradicional da antiga escravatura, mas de controlá-las completamente. As pessoas tornam-se instrumentos completamente descartáveis para fazer dinheiro.

Mais de dez vezes ao acordar de manhã cedo descobri o corpo de uma jovem flutuando na água ao pé da lancha. Ninguém se preocupava em enterrar as raparigas. Lançavam simplesmente os corpos ao rio para serem comidos pelos peixes.

Este era o destino das jovens escravizadas como prostitutas nas cidades mineiras da Amazónia, explicou Antónia Pinto, que ali trabalhou como cozinheira e alcoviteira. Ao mesmo tempo, o mundo desenvolvido deplora a destruição das florestas tropicais, poucas pessoas compreendem que o trabalho escravo é utilizado para as destruir. Os homens são atraídos para a região com promessas de riqueza em pó de ouro, e raparigas de apenas onze anos recebem ofertas de emprego nos escritórios e restaurantes que servem as minas. Quando chegam às longínquas regiões mineiras, os homens são aprisionados e forçados a trabalhar nas minas; as raparigas são espancadas, violadas, e postas a trabalhar como prostitutas. Os seus «agentes de recrutamento» recebem uma pequena soma por cada uma delas, talvez uns 150 dólares. As «recrutas» tornaram-se escravas — não através da posse legal, mas através da autoridade decisiva da violência. A polícia local actua como reforço para controlar os escravos. Como uma jovem explicava: «Aqui os donos de bordéis mandam a polícia bater-nos… se fugimos, eles perseguem-nos, se nos acham matam-nos, ou se não nos matam batem-nos todo o caminho de volta ao bordel.»

Os bordéis são incrivelmente lucrativos. A rapariga que «custa» 150 dólares pode ser vendida para sexo até dez vezes por noite e render 10 000 dólares por mês. As únicas despesas são os pagamentos à polícia e uma bagatela para comida. Se uma rapariga causa problemas, foge ou adoece, é fácil livrar-se dela e substituí-la. Antónia Pinto descreveu o que aconteceu a uma menina de onze anos que se recusou a fazer sexo com um mineiro: «Depois de decapitá-la com o machete, o mineiro circulou na sua lancha rápida, exibindo-a para os outros mineiros, que aplaudiam e gritavam aprovadoramente.»

Como a história destas raparigas mostra, a escravatura, ao contrário do que a maioria de nós foi levada a crer, não acabou. Certamente, a palavra escravatura continua a ser usada para significar toda a espécie de coisas, e demasiadas vezes tem sido aplicada como uma metáfora fácil. Ter dinheiro apenas para sobreviver, receber salários que mal dão para viver, pode chamar-se um salário de escravo, mas não é escravatura. Os meeiros têm uma vida difícil, mas não são escravos. O trabalho infantil é horrível, mas não é necessariamente escravatura.

Podíamos pensar que a escravatura é uma questão de posse, mas isso depende daquilo que entendemos por posse. No passado, a escravatura implicava que uma pessoa possuía legalmente outra pessoa, mas a escravatura moderna é diferente. Hoje, a escravatura é ilegal em toda a parte, e já não há posse legal de seres humanos. Quando as pessoas compram escravos hoje não pedem um recibo nem títulos de propriedade, mas adquirem o controlo — e usam a violência para manter esse controlo. Os escravocratas («Slaveholder» no original. (N. do E.) têm todos os benefícios da propriedade sem as responsabilidades legais. Na verdade, para os escravocratas, não ter a posse legal é uma melhoria, porque obtêm o controlo total sem qualquer responsabilidade por aquilo que possuem.

A despeito desta diferença entre a velha e a nova escravatura, penso que toda a gente concordaria em que aquilo de que falo é escravatura: o controlo total de uma pessoa por outra com fins de exploração económica. A escravatura moderna esconde-se por trás de diferentes máscaras, usando advogados espertos e cortinas de fumo legais, mas quando se arrancam as mentiras, descobrimos alguém controlado pela violência, e a quem é negada toda a liberdade pessoal, para fazer dinheiro para outra pessoa. Ao viajar pelo mundo para estudar a nova escravatura, olhei para lá das máscaras legais e vi pessoas acorrentadas. É claro, muitas pessoas pensam que já não existe uma coisa como a escravatura, e eu era uma dessas pessoas ainda há poucos anos.