sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A questão dos Remanescentes Quilombolas na Região do Vale do Correntes em Sonora/MS

O governo federal está regularizando uma área de mais de 200 hectares de terras para a comunidade remanescente de quilombos da família bispo. Recentemente instituições governamentais estiveram na cidade promovendo uma capacitação para os membros da família, fornecendo subsídios teóricos para lidarem com questões institucionais. Integrantes do Programa Brasil Quilombola do Governo Federal apresentou na ocasião do evento uma proposta metodológica pautada em um conjunto de ações, possibilitando o desenvolvimento sustentável dos quilombolas em consonância com as especificidades históricas e contemporâneas, garantindo os direitos à titulação e à permanência na terra, à documentação básica, alimentação, saúde, esporte, lazer, moradia adequada, trabalho, serviços de infra-estrutura e previdência social, entre outras políticas públicas destinadas à população brasileira e em especial aos grupos remanescentes de quilombos. Segundo a professora entrevistada, membro da comunidade, os primeiros moradores teriam chegado na região há aproximadamente dois séculos e aponta que:
" O casal de negros Atanásio dos Santos e Dona Antônia dos Santos faziam parte deste contexto, tiveram 3 filhos entre eles Eugênia Natalina dos Santos. A comunidade dos Bispos se originou de dona Eugênia e do senhor Camilo dos Santos, principalmente vovó Eugênia que nasceu e se criou nesta comunidade, viu escravos amarrados no tronco, casou com o senhor Camilo liberto pela lei do Ventre Livre vindo de Poconé, tiveram cinco filhos que se criaram neste lugar dentre eles Josefa dos Santos que nasceu em 1925, hoje com 82 anos.
O lugar onde está a "Comunidade Ribeirinha Quilombola Família Bispo", chama-se estância São Sebastião, em homenagem ao santo que a comunidade é devota e realiza festas todos os anos no dia 20 de janeiro. [1]
Durante a entrevista, a professora Débora foi apontando as formas de sobrevivência encontradas pelo grupo ao longo do tempo, que nada tem em comum com o modelo de propriedade majoritário na região. Segundo ela:
" Dona Josefa regularizou as terras que eram devolutas com área de num total 275hectares e 763metros quadrados, mas devido a alguns problemas e dificuldades financeiras teve que se desfazer de parte destas terras, hoje estamos em área aproximada de cento e setenta e cinco hectares, insuficientes para nossas atividades de subsistência.
E conclui falando sobre o pai e a vocação de subsistência cultivada pelo grupo ao longo do tempo:
"Negro Bispo, pirangueiro, atraía para a comunidade pescadores, turistas da cidade a até de outros estados, pois nossa vocação além da agricultura de subsistência era em especial a pesca e tudo que se refere a este ofício pois somos também ribeirinho, devido a isto o local ficou conhecido como "pesqueiro dos bispos", daí o nome Família Bispos, já nos auto-definimos como remanescentes das comunidades de quilombos cujo certificado de auto-reconhecimento foi emitido pela Fundação Cultural Palmares estando esta comunidade registrada no livro n. 003, registro n. 255 e f. 61 daquela fundação.
Esse grupo se apresenta como uma possibilidade de humanização da sociedade estudada, bem como uma forma de resistência ao modelo de dominação imposto. Segundo Clóvis Moura:
"Nos mais de 300 anos que vigorou o sistema escravista no Brasil, o quilombo constituiu um enclave, uma das principais alternativas de negação da produção escravista por parte dos produtores oprimidos. Marcou sua presença e existiu praticamente em toda a extensão do território do Brasil. O quilombo representou uma afirmação da oposição do produtor feitorizado contra o escravismo, produto da singularidade desse tipo de sociedade.(...) [2]
Observa-se que a idéia de resistência é uma constante, o que a família Bispo fez durante os duzentos anos que permaneceram na região pantaneira às margens do rio Corrente, foi resistir, em 1996, o historiador Carlos Magno Guimarães salientou que " o resgate da importância do quilombo, pelo seu caráter de resistência ao escravismo, nos permite aprofundar a compreensão do escravo enquanto sujeito histórico e localiza-lo com agente da luta de classes no âmbito da sociedade que tem por base a escravidão" [3] Neste sentido o negro se torna sujeito e protagonista da sua própria história.
Contra às críticas de grupos locais contra o termo "Remanescentes de Quilombos", afirmando que aquelas terras não foram quilombos no passado, podemos nos pautar na concepção atual dada ao termo e trabalhado por FAIABANI [4], o autor aponta que até muito recentemente a historiografia definia como quilombo o fenômeno histórico singular objetivo. Ou seja, a comunidade formada por cativos que libertavam da escravidão sua força de trabalho. [5] Atualmente foi dado um novo significa, este propõe que a definição de quilombo deve ser assumida pela própria comunidade rural, em processo de auto-atribuição da essência. Para essa proposta , o que importa é que uma comunidade se diga quilombola, não que descenda de quilombola. Ou seja, qualquer comunidade rural e urbana, com alguma descendência africana, ao se autodefinir como quilombo passa a constituir um quilombo. [6] Portanto, a família Bispo se enquadra sim na categoria de remanescentes de quilombos.
O marco histórico desse processo [7], de extrema relevância para a elevação da condição de vida de um grande número de brasileiros, foi o processo constituinte de 1988 que propiciou a mobilização da sociedade civil brasileira. No cerne desta mobilização estavam entidades do movimento negro urbano, buscando incluir dentre os princípios constitucionais a luta quilombola pelo direito à terra e ampliando o debate no campo das políticas públicas acerca da realidade da população negra.
O resultado da mobilização foi a realização nos dias 17,18 e 19 de novembro de 1995 do "I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais", ocorrido em Brasília que teve como tema "Terra, Produção e Cidadania para Quilombolas". No dia 20 de novembro do mesmo ano a Marcha Zumbi dos Palmares pela vida e cidadania, em memória ao Tricentenário de Zumbi dos Palmares, circunscreveu formalmente, as contribuições e reivindicações da mais expressiva manifestação política do Movimento Negro na agenda nacional. [8]
Os reflexos dessas mobilizações podem ser sentidas na região, quando instituições como a FUNASA, dispõem de recursos como a perfuração de um poço artesiano para a comunidade da família Bispo. Essas iniciativas não partem da boa vontade de um grupo no poder, elas são reflexos da participação do povo. Portanto, acredita-se que o presente estudo deve servir para expressar os problemas decorrentes do processo distorcido de construção histórica da região do vale do rio Correntes e tem a pretensão de apontar possibilidades para mudança que prime pela valorização daqueles que ficaram marginalizados do processo de construção da História.


[1] Trechos da entrevista concedida pela professora Débora Bispo.
[2] MOURA, Clóvis. "Quilombos: resistência e escravismo". 3. ed. São Paulo: Ática, 1993.
[3] GUIMARÃES, Carlos Magno. " Mineração, quilombos e Palmares: Minas Gerais no Século XVIII". In: REIS, J.J. & GOMES, Flávio dos Santos. (Org.) Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[4] FIABANI, Adelmir. " Mato, Palhoça e Pilão: o quilombo. Da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004)". São Paulo: Expressão Popular, 2005.
[5] FIABANI. Op. Cit.
[6] Idem.
[7] Programa Brasil Quilombola. Brasília, 2005.
[8] Idem.

2 comentários:

Beatriz Feitosa disse...

Eis alguns comentários ao texto feitos pelo camarada João Henrique.Comentários que considero de uma reflexão muito mais profunda que o texto por mim produzido.

Veja bia,

Atenho-me somente na questão de proposta interpretativa acerca das comunidades remanescentes, pois o texto está bem escrito e merece ser publicado.

o que acontece é que não vejo possibilidade dentro da tônica de fontes orais como baú das verdades históricas...muito menos em documentos arqueológicos ou escritos... essa descrença faz parte das minhas experiências com os 3 tipos clássicos.

posso estar muito raso na minha percepção sobre o assunto, mas penso estarem inventando o quilombo... já pensei em escrever algo nesta linha na dissertação... "a invenção do quilombo".

na fala daquela profa que vc entrevistou fica claro isso... sabe, parece que mais uma vez os remanescentes de escravos, pq aquele caso parece-me se tratar de uma comunidade rural nos moldes de descendentes de escravos e não um quilombo propriamente dito, do ponto de vista historiográfico, precisam de amparo e de alguém que por eles falem...como na época da abolição...

quando ela diz "...já nos auto-definimos como remanescentes das comunidades de quilombos cujo certificado de auto-reconhecimento foi emitido pela Fundação Cultural Palmares estando esta comunidade registrada no livro n. 003, registro n. 255 e f. 61 daquela fundação ." [1]

outra coisa, a capacitação dos membros das ditas comunidades através dessa pedagogia instrutiva pode, de certa forma, conformar os discursos posteriores e alterar o passado histórico concreto para "caber" no modelo necessário ao reconhecimento por parte do Estado. Isso parece deixar um trato de discriminação camuflado na medida em que enxergaria essas pessoas como incapazes e que a sua história precisaria ser moldada de acordo com determinações atuais para serem reconhecidas pelos outros, na figura do Governo , ou seja, só são na medida que representam um discurso esperado, estereotipado e construído conscientemente por aqueles cientistas . (antropólogos)

A conformação das vivências e experiências desses trabalhadores ganha novos matizes perante a sociedade e a própria comunidade . O auto-reconhecimento carrega tanto no decurso do processo como após sua efetivação, sua marca de mudança , em que se vêem agora de outra forma, daquela que a sociedade , o Estado etc, esperam que sejam.
veja, comprei o livro do Fiabani e acabei de ler. (muito bom) Ele denuncia essa manipulação sem entrar muito na questão das fontes orais, mas de certa forma tá lá... pois qdo ele mostra que a atual visão é uma construção de um grupo de cientistas ele dá as dicas de onde é que eles pegam os discursos...e os devolvem na forma de instruções...

e essa coisa da capacitação dos membros não é outra coisa senão uma espécie de paternalismo conformador dos discursos necessários.

pra mim são coisas diferentes também...concordo com a crítica dele sobre essa questão de tudo agora ser remanescente de quilombos...pra garantir acesso à terra..

é um processo excludente dos outros trabalhadores que também são remanescentes daqueles trabalhadores do período escravista, inclusive boa parte deles, diria que a maioria do MST, por ex. é resultante da miscigenação entre ex-cativos e demais misturas, o que de longe já é o suficiente para mostrar que o movimento quilombola tem um caráter "purista". os dados do movimento negro dão a conta de mais de 50% da população serem de descendência negra...

o que acontece é que os resultados dessas misturas, no caso dos sem-terra, são provenientes de grupos de negros que ganharam a liberdade, em sua maioria, e que se estabeleceram nas cidades...
boa parte deles também são oriundos daqueles que continuaram no campo até um tempo antes de migrarem para as cidades...

a remodelagem do conceito e sua difusão nas associações denunciam isso. em vila bela eles não aceitam que índios e brancos façam parte do "quilombo" em construção. nas minhas conversas com eles ficaram bem claros o conceito e o objetivo do movimento de associações. ademais, existe uma elite intelectual e portadora de bens acumulados que se apossou da frente do movimento, mas que não tem passado quilombola. mais uma vez são dominados pelos pares que já vinham fazendo isso desde há muito, e agora, estão mais uma vez nas mãos dessa elite.

essa elite já administrou a cidade antes e continua dando as cartas até hoje. na época que um deles foi prefeito de vila bela, distribuiu terras "devolutas" para membros de sua família e hoje em dia, depois de terem passado boa parte dessas terras aos fazendeiros "brancos", ainda são os mais ricos.
membros dessa elite difundem, olha só a ousadia, a história que vila bela vem de apenas 4 famílias (sic)... mas qdo visitei comunidades rurais e perguntava os nomes das pessoas...nada tinham a parecer com as tais 4... a pergunta seguinte era:

_"mas diz-se que vila bela só tinha 4 famílias... de qual dessas o senhor veio? "

qual era a resposta? uma outra pergunta:

_"quem falou que só tinha 4 famílias ?"
_"dona nemézia disse...".
_ "então deve ser... eu não sei direito dessa história...".

veja bia, existe alguma coisa que só eles sabem... só eles entendem e que não nos é possível captar... mas que existe uma certa dominação e um respeito a essas entidades, isso é bem provável...

não se assume em vila bela cultos afro...mas qdo se visita o cemitério o que se vê são oferendas típicas desses cultos...

estou a escrever um pouco sobre isso...depois posso te mandar.

Beatriz Feitosa disse...

Penso que a grande questão a ser discutida é da ampliação do acesso à terra para os trabalhadores no Brasil.
Defendo a regularização da terra de grupos remanescentes, além da ampliação desses direitos a todos aqueles que ao longo da História foram excluídos do acesse à terra, à distribuição de renda e consequentemente da dignidade
nesse país. Na atualidade o que se promove é uma inserção rebaixada que não leva em conta as necessidades mínimas do trabalhador brasileiro.